Depois de um início emocionante, no qual gastamos uns tantos lencinhos de papel, foi bastante difícil parar a leitura de Vozes de Tchernóbil. Mas somos obedientes e só agora vamos avançar a primeira parte, até a página 121.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
As 50 primeiras páginas de Vozes de Tchernóbil são arrebatadoras.
O capítulo de abertura, “Nota histórica”, traz uma coletânea de publicações bielorrussas na internet entre 2002 e 2005. Para os leitores que não estão tão familiarizados com a catástrofe, a introdução é bem-vinda. Números, datas, nomes, localidades começam a desenhar o cenário que encontraremos na sequência. Tudo assusta – quantidade de mortos, alcance da radiação, incidência atual de doenças oncológicas na região.
Um desses excertos fala do sarcófago construído às pressas para conter o quarto reator, que “continua guardando nas suas entranhas de chumbo e concreto armado cerca de duzentas toneladas de material nuclear”. Esse trecho resume bem o sentimento que temos ao terminar a leitura desse primeiro capítulo. É a sensação de pavor. Pavor diante do mal à espreita:
O sarcófago é um defunto que respira. Respira morte. Quanto tempo ainda se sustentará? A isso ninguém responde.
Por mais chocante que seja a objetividade dessa primeira parte, a verdade é que ela está longe de nos preparar para o próximo capítulo, intitulado “Uma solitária voz humana”. Trata-se do relato de Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassíli Ignátienko.
A voz de Liudmila é um soco no estômago. Parece que Svetlana está nos dizendo: “Lembra-se de todos os números e dados que lhe assustaram no primeiro capítulo? Pois bem, essas estatísticas têm nomes e histórias, bem mais comoventes do que as que os jornais contaram”.
Vassíli e Liudmila eram casados há pouco tempo quando a explosão aconteceu. Ele estava entre os bombeiros que foram acionados para conter as chamas e que subiram até o reator, sem roupa de lona, com a camisa que estavam vestindo em casa. O aviso era de um incêndio comum.
Nos próximos dias, as consequências dessa exposição se manifestariam, da forma mais dolorosa possível, física e psicologicamente. Liudmila conta que o processo clínico de uma doença aguda do tipo radiativo dura catorze dias. “No 14º, o doente morre”. Ela relata toda sua trajetória ao lado do marido nessas duas semanas. A transferência, sem aviso prévio aos familiares, do hospital de Tchernóbil para uma área clínica isolada em Moscou; as regras burladas para poder ficar com Vassíli; a decomposição, em vida, do corpo do marido.
Embora todos dissessem que Vassíli não estava mais lá, que agora ele era uma como um elemento radiativo, Liudmila não conseguia pensar em nada além de estar ao lado dele. É tocante a maneira como ela descreve o paradoxo entre o que via – a degeneração do corpo do marido – e o que sentia – a voz, a alma, a presença dele. O corpo sumia, mas Vassíli continuava ali, inteiro, ao menos para Liudmila.
O meu marido começou a mudar; cada dia eu via nele uma pessoa diferente… As queimaduras saíam pra fora… Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caíam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo… Azulada… Avermelhada… Cinza-escuro… E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever!
Esse depoimento de Liudmila é a expressão perfeita de uma frase que encontramos no terceiro capítulo do livro: “Tudo se modificou, menos nós”. De um instante a outro, o mundo dela, do marido e de várias outras pessoas desapareceu. Eles ainda existiam, mas em uma outra realidade.
O terceiro capítulo é a voz da autora, Svetlana Aleksiévitch, que também é uma “testemunha de Tchernóbil”. Nessa parte, entendemos claramente as motivações da escritora. O título da obra Vozes de Tchernóbil remete ao desejo de Svetlana de contar histórias que foram omitidas pelas narrativas oficiais.
Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem.
Ainda é cedo para dizer se Svetlana realmente consegue construir uma obra polifônica, embora seja essa a proposta do livro. Para a leitura restante, é preciso ter em mente essa condição da escritora, revelada de forma muito transparente nesse terceiro capítulo: ela é parte da história. Svetlana não apenas viu ou ouviu sobre Tchernóbil. Ela viveu. E isso pode ter grande influência na pluralidade do livro. O quanto a voz de Svtelana irá se sobressair nos relatos? Um ponto para ficarmos atentos!
Mais do que explicar seus objetivos e motivações para o livro, nesse terceiro capítulo, Svetlana revela por que ela acha que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo:
Rompeu-se o fio do tempo… O passado de súbito surgiu impotente, não havia nada nele em que pudéssemos nos apoiar; e no arquivo onipotente (assim acreditávamos) da humanidade, não se encontrou a chave que abria a porta. Mais de uma vez ouvi naqueles dias: ‘Não encontro palavras para expressar o que eu vi e vivi’; ‘Ninguém antes me contou nada parecido’; ‘Nunca li nada semelhante em livro algum, nem vi algo assim em filme algum’. Entre o momento que aconteceu a catástrofe e o momento em que começaram a falar dela, houve uma pausa. Um momento de mudez. E todos se lembram dele…
À medida que avançamos na leitura, o único pensamento que nos vem à cabeça é: como pode haver sobreviventes dessa catástrofe? E estamos só no terceiro capítulo.
Há uma frase do escritor alemão Goethe que lembra muito a sensação que temos diante dos relatos de Vozes de Tchernóbil:
Por sorte, o homem é capaz de conceber a desgraça apenas até certo ponto; aquilo que não pode compreender ou bem o aniquila ou o deixa indiferente. Há momentos em que o temor e a esperança se fundem, compensam-se mutuamente e se esvaem numa obscura apatia.
Nós, leitores, estamos tendo a oportunidade de desbravar esse cenário assustador e novo no conforto das páginas de um livro. Já as vozes que deram forma a esta narrativa viveram o desconhecido. Não houve preparo. Não tinha material de consulta. Como bem disse Svetlana:
Hoje cada bielorrusso é uma espécie de ‘caixa-preta’ viva, registra a informação para o futuro. Para todos.
E aí entra o belo papel da literatura e do jornalismo: armazenar e espalhar conhecimento. Não apenas para que tenhamos a que recorrer quando não compreendemos o que nos acontece, mas principalmente para tornar indesejável e injustificável a reincidência de certos erros.
Achados & Lidos
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15 de maio de 2016 at 01:08
Foi um soco no estômago ler até onde vocês propuseram. Aquela sensação de que o perigo pode estar em qualquer lugar e de que é invisível, inodoro, incolor… Descobrir o quão pequenos somos diante do desejo de nos sobrepor à natureza e como é fácil ver quem amamos definhar diante de nossos olhos sem “motivo” palpável…
Comecei com um pé atrás e pensando na “velha mania do jornalismo ser considerado literatura” e na “pretensão de textos jornalísticos serem colocados no patamar da eternidade literária”. Mas não foi isso que vi. Observei não uma jornalista, mas uma sobrevivente de Tchernóbil que estava disposta a contar o que a URSS não mostrava. Além disso, o trabalho de edição dela foi sensacional.
Muito feliz com a proposta de vocês. Provavelmente será um livro inesquecível e já estou acendendo velas para que os outros títulos dela sejam lançados logo no Brasil!
16 de maio de 2016 at 11:59
Ana, também estou gostando muito! O trabalho de edição da Svetlana é mesmo fantástico. Essas entrevistas não devem ter sido nada fáceis. Contar uma história não é nada simples. Imagine contar uma experiência traumática…
Você tocou em um ponto muito interessante que penso que vai aparecer bastante ao longo do livro: nossa relação com a natureza, ou melhor, nossa mania de achar que somos superiores e que a controlamos. Há um trecho, no depoimento de Svetlana, que ela conta como a impotência diante da catástrofe a aproximou da natureza: “Observo o mundo ao redor com outros olhos. Uma pequena formiga se arrasta pela terra, e ela agora me é próxima. Um pássaro voa no céu e também me é próximo. Entre mim e eles, o espaço se reduziu. Não há mais o abismo de antes. Tudo é vida”. A vulnerabilidade colocou o homem no lugar a que ele sempre pertenceu, que é o mesmo de todos os outros seres vivos.
16 de maio de 2016 at 12:23
E nessa relação com a natureza, é interessante como os habitantes que sobraram, que não quiseram partir, passam a observar os animais com mais atenção… As minhocas que se afundam na terra, as abelhas que somem… Os animais não desaprenderam a confiar nos seus instintos, e por isso sabem que algo está errado muito antes dos humanos.
E Ana, pode colocar uma velinha por mim ai também! Estou louca para ler o livro em que fala da participação das mulheres na segunda guerra!
16 de maio de 2016 at 18:32
É impressionante o relato de Liudmila. As primeiras páginas do livro chocam (principalmente por causa das descrições físicas do que aconteceu com o corpo) e provocam a tristeza (lidar com a perda). Sabemos muito pouco sobre a gravidade do acontecimento em Tchernobyl, acho que não podemos imaginar o que aconteceu e o que ainda acontece.
Admiro muito a capacidade da autora em trabalhar a escrita dos relatos narrados oralmente, ao ler parece que escutamos as vozes destas pessoas. Vozes individuais, destinos que juntos narram uma história. Maravilhoso o trabalho!!
Ah! As considerações sobre o jornalismo e literatura apontadas são muito ricas e ajudam a entender um pouco sobre o trabalho da autora, e até que ponto os relatos também carregam as impressões de Svetlana.
17 de maio de 2016 at 11:11
Gabi, você tem razão! Svetlana soube conservar em sua escrita a oralidade dos discursos. Parece que estamos escutando mesmo essas “vozes de Tchernóbil”.
E que bom que gostou das considerações sobre jornalismo literário. É um campo muito rico e vamos explorá-lo mais em breve! 🙂
17 de maio de 2016 at 03:01
Recentemente assisti um documentário chamado “Zika”, onde a médica paraibana Dra. Adriana Melo (que foi a primeira a associar o vírus da Zika com a microcefalia) mostra o pré natal de algumas mães, que possivelmente terão (tiveram) bebês com microcefalia. Ver os relatos: a história de cada uma, o contexto familiar, o amor pelo filho(a), te mostra que esses números ” tem vozes, tem nomes, tem uma história de vida” e que essas histórias importam e tem que ser contadas. Você se solidariza mais com o outro quando ele deixa de ser só uma estatística.
17 de maio de 2016 at 11:17
Isso mesmo, Lilian! Humanizar histórias é a melhor forma de impedir que catástrofes e atrocidades sejam banalizadas. Daí a importância de trabalhos como este de Svetlana e o documentário a que você assistiu. Vou procurar para ver, aliás! ; )