Ler Elena Ferrante é mergulhar no turbilhão de sentimentos, nem sempre virtuosos, tampouco compreensíveis, que compõem a natureza humana. Se nos volumes da tetralogia napolitana a escritora já dá mostras dessa habilidade em trechos esparsos cuja precisão e impacto exigem releitura, em Dias de Abandono são 181 páginas dessa prosa avassaladora. O fôlego narrativo de Ferrante é surpreendente: faz o leitor esquecer seu entorno e o transporta para a caótica intimidade de Olga, uma mulher abandonada pelo marido depois de 15 anos de casamento.
O processo de redescoberta da personagem é central no enredo. Todos os estágios do abandono – dos momentos de lucidez aos de irracionalidade completa – são descritos minuciosamente. A narradora em primeira pessoa potencializa a honestidade do relato. A sensação é de que Olga está logo ao lado, confessando despudoradamente todo seu sofrimento.
Em um primeiro momento, ela se força a manter a calma. Apoiando-se na certeza de que a ruptura com Mario é passageira, Olga leva os dias de maneira desatenta, como se colocasse sua vida em suspenso, apenas aguardando o restabelecimento de sua rotina passada. À medida que o tempo avança, a esperança esmorece e dá lugar a uma mistura de raiva, saudade e obsessão.
O vazio devasta sua existência. O desespero se manifesta em um comportamento agressivo que ela nunca tivera. Os amigos que insistem em não lhe dar notícias de Mario e da amante a enervam. Os filhos e sua necessidade de atenção constante, quando ela não consegue cuidar nem de si mesma, a irritam. O mundo e sua aparente ordem são desaforos ao descontrole da sua vida:
A razoabilidade dos outros e o meu próprio desejo de calma me deixavam nervosa. A respiração ficava acumulada na garganta, preparando-se para vibrar em palavras raivosas.
O caminho de Olga fica, então, cada vez mais escuro. Com o pensamento fixo em trazer Mario de volta ou arruinar sua nova vida, ela revira as memórias em busca de explicações e se desconecta, perigosamente, de tudo ao seu redor. Sua alienação chega a um clímax que deixa o leitor sem fôlego, com vontade de entrar em seu apartamento em Turim, sacudi-la e puxá-la de volta à vida, pelo bem dela e das crianças que se afundam no mesmo redemoinho da mãe:
Não sucumbir, eu dizia. Combater. Temia, sobretudo, a minha crescente incapacidade de me deter num pensamento, de me concentrar numa ação necessária. Sentia-me assustada com torções bruscas, não controladas.
Embora não seja o objeto central do romance, o fato de a heroína da narrativa ser uma mulher em sofrimento pelo abandono de um homem traz à tona a reflexão acerca das expectativas e dos papéis atribuídos à mulher em uma sociedade que ainda está longe da igualdade social, política e econômica entre os gêneros.
Olga representa tantas esposas que anularam seu crescimento profissional para se dedicar à construção de um lar, em uma escolha menos espontânea do que se admite. Quando a estabilidade desse lar é colocada em xeque, Olga não tem como impedir a ruína de sua própria identidade:
Eu tinha me perdido nos seus minutos, nas suas horas, para que ele se concentrasse. Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto ele escalava teimosamente o declive da nossa origem sem privilégios. E agora, agora ele me largava carregando consigo todo aquele tempo, toda aquela energia, todos aqueles sacrifícios que eu fizera por ele, de uma hora para outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele se tornasse o que era.
Nessa análise social do romance, o mais interessante é notar que Ferrante não toma nenhum dos caminhos extremos que sempre acabam por manchar qualquer discurso de igualdade de gêneros. Em sua obra, não há a mulher vítima, menos ainda a super heroína que vence todas as adversidades com uma força feminina descomunal.
Ferrante escolhe o caminho do realismo. Olga incorpora igualmente as virtudes e as fraquezas humanas. Não há meias palavras para descrever seus desejos, seu ciúme, sua inveja e sua vergonha, assim como fica evidente a honrada luta que ela trava para retomar sua consciência e se libertar das amarras de uma vida pautada por ilusões.
Dias de Abandono é um daqueles livros em que a respiração do leitor e a do personagem seguem o mesmo ritmo oscilante e apreensivo. Não espere uma leitura leve, mas uma vez que a comece, prepare-se para não largá-la.
Mariane Domingos
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