Passamos da metade de O Amor dos Homens Avulsos, de Victor Heringer, e nas últimas páginas o amor de Camilo por Cosmim deixou o terreno das vontades para ganhar materialidade, com o primeiro beijo. Corajosos, em vez de se esconder os dois assumem a relação, primeiro para os amigos do bairro e depois para toda a gente do Queím. O choque, contudo, não vem da “cara amolecida” dos amigos, e sim das “caras velhas e das moças de família” do bairro, um dos trechos em que a capacidade do autor de construir julgamentos de forma tênue e sensível ficou mais evidente. Na próxima semana, avançamos até o capítulo 59, na página 127. Continue acompanhando com a gente essa leitura!
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Passada a euforia da descoberta do primeiro amor, Cosme e Camilo têm um choque de realidade. As vulnerabilidades e o preconceito entram em cena quando a relação dos dois vem à tona.
Ao mesmo tempo em que o amor faz o garoto se sentir completo, a dependência em relação a Cosme o enfraquece. É como se esse sentimento tirasse Camilo da solidão, mas o ameaçasse a todo momento com ela. Bastava perder a pessoa amada para que tudo desmoronasse. E era um caminho sem volta: o amor era de tal forma o alcance da plenitude que retornar à situação de antes já não bastaria. Neste trecho, Heringer descreve as sensações que sucedem o primeiro beijo do casal e, desenvolve, brilhantemente, essa dicotomia:
Eu não me sentiria seguro nunca mais. Descobri na hora, isso. Meu coração começou a tossir ar gelado nas veias. Coisa de criança, pânico de qualquer primeiro beijo mesmo. Depois, quando a gente começa a pagar as próprias contas, sente uma coisa idêntica. É um desamparo. Na primeira doença séria, desamparo. Nos aniversários de década, sobretudo no primeiro enta, desamparo. Depois se acostuma. Hoje em dia, vou à padaria desamparado, compro pão desamparado, mortadela desamparado, queijo, que é mais caro, só de vez em quando.
Em outras palavras, amar é ter que se preparar para a ausência justo quando a solidão parece já não ser uma ameaça. Como bem definiu Camilo:
Eu fiquei. Cosmim desapareceu e eu fiquei, como o tentáculo amputado de um polvo.
O amor é uma dependência que aparenta totalmente saudável enquanto se sustenta. Ao lado de Cosme, o narrador era mais forte. Ganhou coragem até mesmo para se expor aos julgamentos do mundo.
A turma de amigos é a primeira a receber a notícia da relação entre os dois. A maneira como o grupo se comporta resulta mais de uma imposição social do que de um estranhamento verdadeiro:
As caras amoleceram no primeiro espanto, voltaram a se mexer e a olhar umas para as outras. Tinham a obrigação da raiva, do asco e da piada, mas ninguém queria começar.
A palavra “obrigação” é muito forte neste trecho. Heringer nos diz, em mais uma prova da sensibilidade de seu texto, que preconceitos, tais como a homofobia, são construções sociais que só cessarão quando o ciclo for interrompido. E, a julgar pela reação das pessoas mais velhas do bairro ao amor entre os dois garotos, essa interrupção depende, sobretudo da maneira como as crianças estão sendo educadas:
A notícia se alastrou, mas o escândalo não veio das caras amolecidas dos meus amigos. Veio das caras velhas e das moças de família (…)
Adultos intolerantes à diversidade moldam futuros adultos igualmente intolerantes. A natureza infantil é despida de preconceitos, mas vulnerável aos padrões que lhe são impostos.
Heringer consegue transmitir ideias essenciais como essa a partir de metáforas que não prejudicam a força da mensagem e ainda enriquecem seu texto. Ao longo de toda narrativa, a começar por aquele trecho inicial inusitado com a descrição meteorológica, percebemos uma forte relação entre os acontecimentos da história e a natureza.
Em meio a suas lembranças, Camilo conta episódios do seu cotidiano atual. Neste último trecho lido, ele dedicou quase um capítulo inteiro para contar da árvore que alastrava suas raízes, invadindo tubulações e pavimentos. Inevitável ler este trecho e não associá-lo à transformação que o narrador via acontecer em seu íntimo:
Acho bonito quando as árvores fazem isso. Durante anos as raízes vão crescendo quietinhas debaixo dos nossos pés, crescem, endurecem, se esparramam – e vão forçando a superfície da calçada.
Assim como a árvore se esparramava, o garoto Camilo desabrochava para vida. E da mesma forma que as raízes forçavam a superfície da calçada, o amor dele por Cosme desafiava as convenções para se impor.
Esse não é o único trecho em que Heringer usa o comportamento da natureza para dar ritmo à narrativa. Quando fala das enchentes que, desde sua infância, atingiam o Queím, Camilo antecipa sutilmente sua breve e avassaladora história com Cosme:
Todo idílio termina em tempestade, e da tempestade à enchente são poucas horas. Todo mundo sabe como é ruim nosso sistema de esgoto, as galerias subterrâneas, entra prefeito, sai prefeito… A enchente logo vira dilúvio e o dilúvio, oceano.
Essa corrente que se expande e tudo absorve, porém, também reflui, constata o narrador. Se a face das águas mostra uma imagem lenta e calma, de luto, no fundo há o plâncton, a origem da vida. Esse ciclo inevitável de acontecimentos faz ressurgir a vida, “e o enlutado uma hora se anima”.
Mas não Camilo. Já próximo a velhice, o narrador segue preso ao luto. Por isso, o personagem de Renato, neto do assassino de Cosme, nos desperta a curiosidade. Camilo se afeiçoa ao menino, o recebe em casa para atividades tão vulgares como assistir TV a cabo e comer pão com mortadela, até que o menino praticamente passa a morar no apartamento.
Nessa relação, não há uma troca clara: tudo que o narrador parece querer poder fazer pelo menino – que é alvo dos mesmos preconceitos sofridos por Cosmim mais de 30 anos antes – é cuidar para que ele tenha um destino diferente do de seu primeiro amor. É a ternura, e não a paixão, que parece mover essa relação.
Achados & Lidos
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