Dois jovens cheios de sonhos e apaixonados por literatura chegam à Cidade do México e logo se inserem em um círculo de amigos que compartilham seus gostos e também o frenesi da juventude. Nas mãos do escritor chileno Roberto Bolaño, esse enredo, aparentemente banal, ganha contornos originais que anunciam todo potencial de um dos maiores nomes da literatura latino-americana.
Jan, fanático por ficção científica e Remo, por poesia (ambas paixões compartilhadas pelo escritor), partem do Chile rumo ao México prontos para experimentar a liberdade que eles acreditam ser possível apenas a partir de uma vida imersa na literatura. Enquanto Remo não tarda em encontrar empregos que proporcionem não apenas o exercício da escrita, mas também o seu sustento, o amigo Jan parece viver em uma realidade alternativa. Passa os dias encerrado no pequeno quarto que alugaram, escrevendo cartas para seus escritores de ficção científica favoritos e tendo sonhos estranhos com os personagens dos livros que lê.
As vozes de Jan e Remo compõem a narrativa fragmentada de O Espírito da Ficção Científica, que ainda conta com um terceiro “narrador”, se é que assim podem ser chamadas as transcrições soltas de uma entrevista absurda, regada a muito álcool, entre uma jornalista e um escritor premiado.
Os capítulos se alternam sem uma ordem definida: os relatos de Remo se misturam às cartas desvairadas de Jan e aos trechos dessa entrevista nonsense. A linearidade do enredo se apoia nos relatos de Remo desenvolvidos a partir de suas incursões pela Cidade do México e sua convivência com Jan.
A narrativa fragmentada, interrompida é uma marca do escritor chileno. Neste romance, essa justaposição não é tão bem trabalhada como em 2666 ou A Pista de Gelo – produções de um Bolaño mais maduro, que parece ter o controle da história, não importa quantas digressões os personagens façam.
Em diversos sentidos, não apenas no estilo narrativo, O Espírito da Ficção Científica é um prenúncio da obra do escritor chileno. A temática dos sonhos da juventude, da rebeldia e da busca por um segredo ou uma resposta – que, neste romance, aparece de maneira bem sutil no trabalho de jornalismo investigativo que Remo empreende – é típica da literatura de Bolaño. Mesmo nos delírios de Jan, que parecem tão indecifráveis, é possível ver uma semente das imagens caóticas que são a premissa do grande 2666.
O personagem Remo é outra herança nascida neste romance. O chileno aspirante a poeta irá aparecer, mais maduro e bem menos sonhador, em outro livro de Bolaño – A Pista de Gelo (confira a resenha aqui). Logo na primeira frase dessa outra história, que se passa na Espanha, ele relembra a adolescência, dizendo que havia conhecido o amigo sobre quem falava em uma “zona turva e oscilante que pertencia aos poetas de ferro” do México em “uma noite carregada de névoa”.
As noites são um elemento essencial à narrativa de O Espírito da Ficção Científica, pois elas funcionam como uma metáfora da alma sonhadora dos jovens. Todos os acontecimentos importantes da vida de Jan e Remo na Cidade do México têm lugar no limite entre a noite, que é o palco dos sonhos, e o amanhecer, que é o chamado para a realidade, seja ela de sucesso ou de fracasso.
Embora este romance não seja o mais emblemático da riqueza do texto de Bolaño, nas descrições desses momentos mágicos e efêmeros que são os amanheceres, o escritor chileno dá mostras do domínio de linguagem que irá caracterizar a sua obra. Ele brinca com as palavras e dá forma aos mais abstratos sentimentos e imagens:
A noite de que falo – noite gatesca de sete vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em momentos díspares e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava ou persistia uma parte e portanto toda ela. Hidra amabilíssima, capaz de, às seis e meia da manhã, voltar inopinadamente às três e quinze por um espaço de cinco minutos, fenômeno que sem dúvida pode ser incômodo para alguns mas que para outros era mais que uma bênção, um perdão real e uma forma de rebobinar.
Bolaño escreveu O Espírito da Ficção Científica no início dos anos 80 e, como aconteceu com boa parte de sua obra, passou os anos seguintes revisitando os manuscritos. A decisão de sua viúva, Carolina López, de publicar esse romance foi alvo de polêmica no último ano, não só pelo dilema que sempre paira sobre publicações póstumas (será que o escritor teria lançado o livro se ainda estivesse vivo?), mas também pelo anúncio do rompimento com a Anagrama, editora comandada por um amigo do autor, que até então publicava sua obra em espanhol.
A ficção apareceu tardiamente na vida de Bolaño, principalmente se considerarmos sua morte precoce aos 50 anos. Mas ele foi um escritor prolífico. Em poucos anos, escreveu grandes obras e ainda deixou diversos manuscritos.
O Espírito da Ficção Científica é o amanhecer do escritor no campo da ficção. Antes de se dedicar aos romances, Bolaño passou anos em um “noite gatesca de sete vidas” sonhando em viver de poesia e realizando trabalhos manuais para se manter. Em entrevista, ele revelou que decidiu se dedicar à ficção pela estabilidade financeira dos filhos. Tal como o amanhecer despertava Remo diariamente de suas noites sonhadoras na Cidade do México, a escrita ficcional surgiu como um chamado da realidade para Bolaño. Para sorte da boa literatura, não foi um amanhecer qualquer. Foi, como diz o personagem Jan, um daqueles “amanheceres extraordinários”.
Mariane Domingos
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24 de abril de 2017 at 10:00
Excelente resenha.