Em A Resistência, o escritor Julián Fuks destrincha o significado da palavra que dá título ao livro a partir das memórias afetivas de um narrador que se vê dividido entre a necessidade de contar uma história e a dificuldade de recompor fatos inalcançáveis, seja pela distância do tempo, seja pela grandeza do trauma. O romance ganhou o Prêmio Jabuti deste ano e reacendeu o holofote sobre o autor que, já em 2012, figurava na lista dos 20 melhores jovens escritores brasileiros da revista Granta.
Filho de militantes de esquerda que buscam exílio no Brasil nos anos sangrentos da ditadura argentina, o narrador, Sebastián, começa seu relato apresentando o irmão mais velho e revelando que ele foi adotado:
Se a inquietude continua a reverberar em mim, é porque ouço a frase também de maneira parcial – meu irmão é filho – e é difícil aceitar que ela não termine com a verdade tautológica habitual: meu irmão é filho dos meus pais. Estou entoando que meu irmão é filho e uma interrogação sempre me salta aos lábios: filho de quem?
O tempo presente e as recordações se alternam e revelam uma família marcada pela luta e pelo silêncio – ambos impostos tanto pela ditadura quanto pela culpa.
A relação conflituosa com o irmão é o gatilho para a empreitada literária do narrador, que busca nas palavras o refúgio que não encontra em casa. As lembranças imprecisas sobre o nascimento da criança e os caminhos que a levaram ao lar adotivo trazem à tona uma inquietação que faz o pessoal transcender para a política.
A sutileza na descrição das memórias e dos problemas familiares não impede que as truculências da ditadura argentina tenham espaço no romance. A orfandade proporcionada por um Estado aniquilador de pais e de cidadãos, a imposição do silêncio e a violência do exílio ganham contornos impactantes no texto de Fuks:
No mundo em que viviam meus pais, naquele mundo, invertiam-se mesmo essas lógicas mais incompreensíveis, invertia-se a sordidez para torná-la mais sórdida. Proteger-se era então afastar-se, habitar a rua pelo máximo tempo possível. No mundo em que meus pais viviam, a casa se fizera inóspita.
A linguagem é sóbria, mas não é pobre, pelo contrário. Em cada frase, nota-se a escolha calculada do vocabulário. Assim como o substantivo do título, “resistência”, alcança uma escala inimaginável de significados, outras palavras, como exílio, adoção, silêncio, proliferam no texto e, a cada ocorrência, descortinam novas percepções:
Sei que se tratava de um exílio, de uma fuga, de um ato imposto pela força, mas não será toda migração forçada por algum desconforto, uma fuga em alguma medida, uma inadaptação irredimível à terra que se habitava?
Outro ponto de destaque do romance é a maneira franca com que a falibilidade da memória é encarada. Em diversos momentos, o narrador se corrige, declara sua incerteza sobre as recordações e abre as portas para ficção. Esse estilo lembra bastante o escritor argentino Alan Pauls, cujas obras convidam o leitor a recordar sim, mas com naturalidade e sem temer o esquecimento, já que, como ele mesmo diz, esses opostos caminham sempre juntos, limitando um ao outro.
Fuks tem um irmão, que foi adotado em Buenos Aires, e é filho de psicanalistas argentinos que vieram ao Brasil como exilados. O romance nasceu no seio de sua família. A identificação do autor com o narrador, que também é um escritor tentando expiar na literatura seus fantasmas, torna esse jogo de memória, ficção e realidade ainda mais interessante.
A resistência está em toda parte: na militância dos pais na Argentina dos anos 70, na luta solitária do irmão para se sentir parte de um lar e na dificuldade do narrador para concretizar em palavras a efemeridade da própria memória. A resistência está em um relato que é tão íntimo, quanto público:
Resistir: quanto em resistir é aceitar impávido a desgraça, transigir com a destruição cotidiana, tolerar a ruína dos próximos? Resistir será aguentar em pé a queda dos outros, e até quando, até que as pernas próprias desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia derrota, gritar apesar da rouquidão da voz, agir apesar da rouquidão da vontade? É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável. Quanto do aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?
Desde o título à última linha, Fuks dá o seu recado. O sucesso desse romance confirma a urgência de uma época que clama por histórias de resistência.
Mariane Domingos
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