Acompanhar os dias de António no Lar da Feliz Idade não é tarefa fácil para os mais sensíveis. :’( Nesta próxima semana, avançamos mais dois capítulos na leitura de A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe – até a página 91, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 77, se você tem a edição da Cosac Naify.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Depois de um começo arrebatador em que a dor da perda é seguida pelo trauma da internação em um lar para idosos, a cena mais emblemática do terceiro capítulo de A Máquina de Fazer Espanhóis é aquela em que António descreve o pesadelo que o assola.
A figura onírica dos pássaros devoradores, que invadiam o quarto para bicar seu corpo adormecido, é assustadora e, ao mesmo tempo, uma tradução clara do estado de espírito de António:
subitamente debicavam-me o corpo e eu ia permanecendo vivo e, até não ter corpo nenhum, a consciência não abandonava. eu agoniava por achar que a morte não dependia do corpo, condenando-me a padecer daquela espera para todo o sempre. o estupor do corpo já desfeito e a morte sem o perceber, sem fazer o que lhe competia por uma crueldade perversa que eu nunca previra.
“o estupor do corpo já desfeito e a morte sem o perceber” – essa é a vida de António desde a partida de Laura e a chegada ao lar. Ele passa os dias à espera de um golpe de misericórdia da morte.
Não sabemos ainda o quanto Valter Hugo Mãe irá explorar esse sonho, mas apostamos em uma bela metáfora ao longo de toda a narrativa. Nas duas edições brasileiras do livro, temos elementos relacionados a pássaros nas ilustrações da capa, o que nos leva a especular sobre a importância desses pesadelos para a história.
Por ora, já conseguimos identificar alguns “abutres” da vida de António. Esses dois últimos capítulos descrevem bem a rotina no lar e revelam como a energia dos internos é sugada aos poucos por episódios que, para quem observa de fora, parecem corriqueiros, mas na verdade têm um poder devastador na vida do idoso.
Aguardar uma carta que nunca chega. Receber visitas cerimoniosas da família que antes lhe via todos os dias. Contando assim não significa muito. Mas quando António relata como ele ou seus companheiros enxergam essas situações, a sensibilidade aflora. E Hugo Mãe sabe como poucos escritores usar esse recurso da maneira mais elegante e certeira possível.
Observem, por exemplo, a precisão de António ao quantificar o tempo transcorrido dentro do lar: “foi ao fim de seis dias que disse a primeira palavra” ou “passados vinte e três dias a elisa e o meu genro vieram visitar-me”. Detalhes narrativos como esse dão força à proposta do romance de trazer uma nova perspectiva sobre a realidade do envelhecimento.
O tempo, dentro do lar, se arrasta lentamente rumo à morte, que parece reger todas as atitudes dos residentes. Amargurado pela mudança e pelo súbito encontro com as limitações da velhice, António é confrontado, no oitavo dia de internação, com a decisão de receber ou não a família.
achei muito estranho que mo perguntasse. esperaria que nos primeiros tempos de uma experiência assim toda a proximidade da família com o idoso seria benéfica. contudo, encontrava-me ali na obrigação de lhe dizer que sim ou que não, e pensei o suficiente para trazer ao de cima o pior de mim.
A amargura de António com seu novo status, o de idoso rejeitado, aparece em cada linha da narrativa. A dor que ele quer infligir à filha e ao seu genro é apenas aquela que ele sente por ter sido despejado em um lar no qual a sua única expectativa é morrer.
Quando enfim decide receber a família – vinte e três dias e duas visitas dispensadas depois -, António despreza o fato de vê-los vestido em roupas arrumadas, “adomingados”, para visitar alguém com quem antes eles conviviam todos os dias. Sua transformação em uma obrigação para a família, tal qual um passeio aborrecido ao zoológico, o transtornam por perceber sua ingenuidade ao acreditar que o convívio com a família poderia continuar a ser cotidiano. Na escrita precisa de Valter Hugo Mãe, aquelas visitas o fazem se sentir como um “mendigo do que havia sido”.
A postura agressiva, algo que também marcou esses últimos dois capítulos, logo vem à tona mais uma vez. Dessa vez, a raiva é dirigida contra seu outro filho que, morando na Grécia, não compareceu ao velório da mãe. Elisa tenta amenizar a situação mas, entre outros impropérios dirigidos ao filho ausente, temos mais uma frase incontornável de Hugo Mãe: “se lhe falares, diz-lhe que está tudo muito bem e que vamos morrendo devagar, mais devagar do que parece”.
A conversa não termina bem e António chega a dizer que, para ele, o filho está como se estivesse enterrado. As barreiras que o personagem tenta construir com o mundo externo, porém, não poderão ser mantidas por muito tempo.
Alguns dias depois, a visão de Elisa no escritório do médico do lar, doutor Bernardo, lhe causa certa comoção e reduz sua tentativa de tentar se distanciar da família. Seu coração ainda não é capaz de aceitar completamente a situação que ela lhe infligiu, mas como pai ele não consegue virar às costas à cena da filha chorando no gabinete do médico.
quis só que ela ficasse com aquela espécie de breve perdão, o único que eu conseguia dar-lhe. era um perdão rápido e pequeno. como se também eu pudesse, num momento, usar um coração pequenino para sentir menos as coisas ou ser uma espécie qualquer de sovina.
O que António não consegue perdoar é a ironia de estar trancafiado em um lugar ao qual tem que chamar de lar, e que ainda tem o péssimo nome de “idade feliz”. António também não consegue perdoar que, nesta idade, tenha que aprender novos hábitos, fazer novas amizades, encarar a solidão e a depressão sozinho quando tudo que esperava da velhice era um lento processo de desaprendizagem ao lado de Laura.
um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisa quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. (…) a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã sejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades.
Para António, a perda de capacidades é como uma defesa natural, um instinto de sobrevivência, já que seria insuportável encarar o iminente desaparecimento com lucidez.
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