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Possuía um sangue-frio insuperável, uma tranquilidade aparente que mascarava terríveis exaltações.
Essa é Thérèse Raquin (Penguin Books, 240 páginas), protagonista do romance homônimo de Émile Zola. Uma jovem que sofre de uma existência monótona: divide seus dias entre um casamento infeliz com o primo doente, Camille, e o trabalho na loja da sogra, situada numa passagem obscura de Pont-Neuf, em Paris.
Os traços rígidos e o semblante impenetrável de Thérèse escondem um temperamento dominado pelos nervos. Quando seu destino se cruza com o do impulsivo Laurent, amigo do seu marido, o resultado é explosivo e trágico.
Os desejos carnais levam a dupla ao adultério. O desejo de liberdade leva-os ao assassinato de Camille. Nasce, então, um remorso corrosivo que, segundo Zola, no prefácio da segunda edição do romance, se relaciona mais com uma disfunção no sistema nervoso que com questões da alma:
Os amores dos meus dois heróis são a satisfação de uma necessidade; o assassinato que eles cometem é uma consequência do adultério, consequência que eles aceitam como os lobos aceitam o assassinato das ovelhas; enfim, isso que fui obrigado a chamar de remorsos, consiste em uma simples desordem orgânica, em uma rebelião do sistema nervoso que tende a se romper. A alma é perfeitamente ausente, porque eu quis assim.
(…) meu objetivo foi um objetivo científico antes de tudo.
Essa observação minuciosa, sem ressalvas morais, dos personagens é o ponto de partida da escola literária liderada por Zola e inaugurada justamente com o romance Thérèse Raquin: o naturalismo. O princípio desse movimento é expor o que há de mais verdadeiro, e por vezes mais assustador, na essência humana, ocupando-se mais do biológico que do psicológico.
Nesse mesmo prefácio, que Zola escreveu em resposta aos críticos que o acusaram de obsceno, o autor explica:
Em Thérèse Raquin, eu quis estudar os temperamentos e não os caráteres. Nisso se baseia todo o livro. Escolhi personagens soberanamente dominados por seus nervos e por seu sangue, desprovidos de livre arbítrio, levados à cada ato de suas vidas pelas fatalidades de sua carne. Thérèse et Laurent são brutos humanos, nada além disso.
O talento descritivo de Zola é capaz de dar novas cores a temáticas já bastante exploradas na literatura mundial, como o remorso (quem não se lembra de Crime e Castigo?). Se com Dostoiévski, os sintomas do arrependimento pesam na consciência de Raskolnikóv, com Zola, eles se manifestam no corpo de Thérèse e Laurent. Diferentes na forma, mas iguais no efeito: duas obras-primas da literatura marcantes por mergulharem com maestria na complexidade humana.
[ENGLISH VERSION]
She possessed supreme composure, and an apparent tranquility that masked terrible transports.
This is Thérèse Raquin, the main character of Émile Zola’s eponymous novel. A young woman who suffers from a monotonous existence: she is stuck in an unhappy marriage to a sickly cousin and she spends her days in a boring job as a vendor in her mother-in-law’s boutique, located at Passage du Pont Neuf, a dingy alleyway in Paris.
Thérèse’s rigid facial features and her impassive face covers up an explosive personality. When the impulsive Laurent, who is her husband’s friend, crosses her path, the result is tragic.
The desires of the flesh drive the pair to adultery. The desire for freedom drives them to Camille’s murder. Then comes corrosive remorse that, according to Zola, in the foreword to the second French edition of the novel, is caused rather by a rebellion of a nervous system strung to the point of breaking than matters of the soul:
The amours of my hero and heroine are the satisfying of a necessity; the murder they commit is a consequence of their adultery, a consequence which they accept like wolves accept the slaughtering of sheep; finally, that which I have been obliged to term their remorse, consists in a simple organic disorder, in the rebellion of a nervous system strung to the point of breaking. The soul is entirely wanting; I admit this the more readily as I wished it to be so.
(…) my aim has been, before all other, a scientific one.
This thorough understanding of the characters, without moral reservations, is the starting point of the literary movement led by Zola and inaugurated precisely by the novel Thérèse Raquin: the naturalism. The principle of this movement is to expose the truth about the human essence, even the most frightening one, through biological (and not psychological) facts.
In that same foreword, Zola wrote in response to critics who accused him of being obscene:
In Thérèse Raquin, I have sought to study temperaments and not characters. In that lies the entire book. I have selected personages sovereignly dominated by their nerves and their blood, destitute of free will, led at each act of their life by the fatalities of their flesh. Thérèse and Laurent are human brutes, nothing more.
Zola’s descriptive language skills give new color to a theme widely explored in literature, such as remorse (for instance: the unforgettable Crime and Punishment). While in Dostoevsky’s novel the symptoms of regret weigh on Raskolnikov’s consciousness, in Zola’s work they cause the most primitive physical responses on Thérèse and Laurent’s bodies. Different in form but equal in effect: two remarkable masterpieces of literature that go deep into human complexity.
Mariane Domingos
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