Considerado um forte candidato a clássico pela revista The New Yorker, Soldados de Salamina (Editora Globo – Biblioteca Azul, 213 páginas), do escritor espanhol Javier Cercas, é uma daquelas leituras que renovam a fé na literatura contemporânea. Uma história simples combinada a uma estrutura narrativa intrincada e inovadora faz dessa obra uma experiência recomendável a qualquer apaixonado por literatura.
O romance traz as aventuras de um escritor, que ao que tudo indica é o próprio Cercas, durante o processo de criação do seu novo trabalho, o livro Soldados de Salamina. Trata-se, portanto, de uma metanarrativa, ou seja, o relato se volta para ele mesmo.
Depois de algumas empreitadas frustradas na literatura e da decisão de abandoná-la, Cercas se vê novamente diante de uma história que precisa ser contada. O personagem central do episódio que o intriga é Sánchez Mazas, político e ideólogo da Falange, partido de sustentação da ditadura de Franco.
Capturado por republicanos nos estertores da sangrenta Guerra Civil Espanhola (1936-1939), Mazas escapou de um fuzilamento e teve um retorno triunfal, quando as forças fascistas chegaram ao poder. A curiosidade pelos detalhes dessa fuga, que com o tempo ganhou contornos novelescos, levam o escritor a um trabalho profundo de investigação.
O medo de um novo fracasso como romancista faz com que o autor se esconda atrás do jornalismo. Para apaziguar sua ansiedade, ele se convence de que está se dedicando não à escrita ficcional, mas sim a uma narrativa real.
No entanto, à medida que a história avança, o narrador percebe as armadilhas dessa estratégia. Ele se depara não só com a subjetividade da memória, já que as lembranças dos seus entrevistados oscilam em um mar de imprecisão, como também com suas necessidades como escritor. Desde o início, embora nem desconfiasse disto, Cercas tinha um propósito claro com sua literatura e nem a inflexibilidade dos fatos seria capaz de desviá-lo dessa missão:
… também supunha que, ainda que tudo o que com o tempo eu conseguira averiguar sobre Sánchez Mazas constituísse o núcleo de meu livro, o que me dava segurança, chegaria um momento em que teria de prescindir dessas muletas, porque – se o que escreve tiver um interesse real – um escritor não escreve nunca sobre o que conhece, mas precisamente sobre o que ignora.
Nesse afã da descoberta e da literatura como busca interior, Soldados de Salamina reúne ricas reflexões sobre temáticas universais. Cercas fala, entre outros temas, sobre a guerra, os heróis e o papel, por vezes cruel, da memória na legitimação da existência humana:
Acredite: essas histórias não interessam a ninguém, nem sequer a nós que as vivemos; houve um tempo em que sim, mas agora já não. Alguém decidiu que era preciso esquecê-las e, sabe de uma coisa?, acho que o mais provável é que tivesse razão; além disso metade delas são mentiras involuntárias e a outra metade mentiras voluntárias.
Em um dos trechos mais geniais do livro, Cercas conta um encontro decisivo que teve com o escritor Roberto Bolaño. Ele estava prestes a abandonar seu projeto, quando, por acaso, o chileno o atiça com novas pistas, que revelam outro lado da história de Mazas, e com o poder sedutor da literatura.
Cercas aposta, como poucos escritores, em uma mistura ousada entre realidade e ficção. A confusão que ele cria na cabeça do leitor, ao invés de desmerecer a obra, a engrandece. Se no começo da leitura, há um certo incômodo pela ansiedade em descobrir o que é fato e o que é ficção, a certa altura, isso pouco importa. Cercas consegue, por meio dos próprios personagens e da jornada que eles percorrem, convencer o leitor de que essa curiosidade é menos importante do que a história em si e do que os percalços que ele enfrenta para contá-la.
Metanarrativa do início ao fim, a essência dessa obra é muito bem resumida em uma das falas do personagem de Bolaño:
Todas as boas narrativas são narrativas reais, pelo menos para quem lê, que é o único que importa.
Soldados de Salamina
213 páginas
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Mariane Domingos
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