Prestes a se aposentar, Martín Santomé não sabe bem o que fará com seu tempo ocioso. Em um diário, ele faz planos para a sua liberdade permanente, que ao mesmo tempo parece uma espécie de prisão: entre a jardinagem, o violão e a escrita, Santomé sabe, intuitivamente, que estará confinado à solidão dos dias.
Viúvo e pai de três filhos com os quais mantém um relacionamento distante, apesar de habitarem o mesmo teto, Santomé é o personagem central de A Trégua, (Alfaguara, 180 páginas), do uruguaio Mario Benedetti. Prestes a completar 50 anos, a vida maçante de Santomé é transcrita em um diário que reúne impressões, reflexões e a observações do cotidiano, de um jeito tão direto quanto cativante, pela franqueza de seu relato.
Se um dia eu me suicidar, será num domingo. É o dia mais desalentador, mais sem graça, Quem me dera ficar na cama até tarde, pelo menos até as nove ou as dez, mas às seis e meia acordo sozinho e já não consigo pregar o olho. Às vezes penso o que farei quando toda a minha vida for domingo.
Esse cotidiano só muda quando são contratados três novos empregados para seu escritório, que ficarão sob sua supervisão: dois homens e uma mulher. A princípio, Santomé não vê muito em Laura Avellaneda, a nova funcionária: “Não é uma formosura. Bom, sorri passavelmente. Já é alguma coisa”.
O machismo da época não deixa de transparecer nas anotações diárias do personagem. Santomé avalia as pernas de Avellaneda, desconfia das mulheres quando se trata de matemática ou durante o período menstrual.
É difícil não ler o texto com os olhos de hoje e criticar, além dessas passagens, a relação de subordinação entre os dois, mas a força de A Trégua acaba sobrepujando esse estranhamento inicial: o romance de Avellaneda e Santomé não é uma aventura entre uma jovem de 24 anos e seu chefe de meia-idade. É um reencontro de possibilidades que pareciam já ter se esvaído, um resgate das memórias e dos sentimentos que só um novo amor pode desencadear.
O jogo entre o passado e o presente se acentua à medida que avançamos na leitura. Em determinado momento, Santomé reencontra um amigo de infância, que mal reconhece. Amizade restabelecida, ele o convida para visitar sua casa e rever antigas fotos do pessoal da rua. Aos poucos, Santomé desperta para as memórias de Isabel, a mãe de seus três filhos, que havia dominado sua vida afetiva muito depois de sua morte:
Todo o mecanismo dos meus sentimentos ficou retido há vinte anos, quando Isabel morreu. Primeiro foi dor, depois indiferença, mais tarde liberdade, ultimamente tédio. Longo, deserto, invariável tédio.
São amores diferentes, um mais jovem, outro mais maduro, mas é inegável que a experiência de um o faça resgatar as memórias do outro, revivendo um passado distante ao mesmo tempo em que se entrega ao novo amor no presente, fazendo desaguar memórias guardadas por mais de duas décadas.
O diário também permite que o personagem divague sobre outras questões mais cotidianas, que vão da situação política e econômica do Uruguai durante os anos 60 até as relações que estabelecemos no trabalho:
Nos escritórios não existem amigos; existem sujeitos que a gente vê todos os dias, que se enfurecem juntos ou separados, fazem piadas e se divertem com elas, que trocam suas queixas e se transmitem seus rancores, que reclamam da Diretoria em geral e adulam cada diretor em particular. Isso se chama convivência, mas só por miragem a convivência pode chegar a parecer-se com a amizade.
Ótimo observador de seu entorno, a única dificuldade de Santomé parece ser analisar a nova chance de felicidade que lhe é dada. Sem recorrer a clichês, o autor nos lembra que a vida não dá tréguas: os momentos de felicidade são tão fugidios como quando Avellaneda e Santomé observam a chuva cair lá fora, depois de se ensoparem tentando fugir da tempestade. Eles duram tão pouco quanto uma chuva de verão.
Contido em suas emoções e sentimentos, Santomé parece antecipar os desdobramentos da vida:
A quem chora todos os dias, o que resta lhe fazer quando couber uma grande dor, uma dor para a qual sejam necessárias as máximas defesas? Sempre é possível matar-se, mas isso, afinal, não deixa de ser uma solução pobre.
Tainara Machado
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