Entre desaparecimentos suspeitos e um ambiente endiabrado, continuamos a mergulhar no passeio por Moscou proposto por Mikhail Bulgákov em O Mestre e Margarida. De forma provocativa, o autor russo coloca o diabo como o mestre da magia negra, capaz de fazer desaparecer pessoas com facilidade. Pelo paralelo com Stálin e as críticas nem sempre sutis ao regime político da União Soviética, o livro de Bulgákov só foi publicado em seu país em 1973. Continuamos empolgados com essa leitura ao mesmo tempo espantosa e intrigante! Está acompanhando conosco? Na próxima semana vamos até a página 124, ou capítulo 12, caso você não tenha a edição da foto!
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Não existe infelicidade maior do que a perda da razão.
Esse pensamento, que vem à mente do poeta Riúkhin ao deixar a clínica psiquiátrica, onde foi instalado Bezdômny, provoca uma reflexão interessante no leitor de O Mestre e Margarida. Ao narrar a chegada do Diabo e de sua comitiva à Moscou, em uma prosa delirante, o autor russo parece questionar a sanidade de todo um povo diante do autoritarismo de um regime em que as pessoas desapareciam do dia para a noite, sem deixar vestígios.
O sumiço de Bezdômny acontece por causa de sua suposta loucura, ao apontar sua caçada ao consultor que sabia, de antemão, que seu amigo Berlioz seria decapitado. Ao argumentar pela culpa do estrangeiro, Bezdômny soa estar cada vez mais delirante, nos fazendo pensar que em situações limite, a realidade pode ser ainda mais surpreendente do que a ficção. O próprio Riúkhin se vê envolto nessa bruma de realidade insana, ao deixar o hospício e retornar para Moscou – um sentimento, aliás, muito bem descrito nesta frase genial de Bulgákov:
O dia despencava incontrolavelmente em cima do poeta.
No capítulo seguinte, O Apartamento Sinistro, somos apresentados a um novo personagem: Stiopa Likhodeiêv, o diretor do teatro de Variedades. Depois de uma noite regada a muita bebida, Stiopa acorda com uma ressaca brutal e logo se vê acompanhado de um desconhecido, vestido de negro e boina preta, com voz baixa e sotaque estrangeiro.
Stiopa descobre que, na noite anterior, assinou um contrato para apresentação do professor de magia negra e seu séquito, composto por um ruivo avantajado, um homem de pince-nez sem uma lente e um gato preto de proporções exageradas. Se a situação ainda não parece surreal o suficiente, ficamos sabendo que o apartamento onde se encontram goza de má reputação: todos os habitantes anteriores desapareceram, entre eles Berlioz, que dividia a casa com Stiopa.
O destino do diretor, logo ficaremos sabendo, não será diferente: ele é expulso de Moscou pelo séquito do Diabo, enquanto julga que enlouqueceu de vez.
É sempre possível ler a obra de Bulgákov como uma crítica contundente ao regime stalinista. Se em O Mestre e Margarida as pessoas somem de repente, indo parar em Ialta com apenas um aceno de cabeça do Diabo e de sua inusitada comitiva, sabemos que o regime soviético, sob o comando de Stálin, despachou milhares de pessoas para campos de trabalho forçado, nos expurgos ao longo da década de 30, quando Bulgákov escrevia o livro.
Svetlana Aleksiévitch, em O Fim do Homem Soviético, relata, a partir de depoimentos de pessoas que viveram a ascensão e a queda do império soviético, esse clima de tensão e terror do regime stalinista:
Por que nós não julgamos Stálin? Eu vou te responder… Para julgar Stálin, teríamos que julgar nossos parentes, nossos conhecidos. As pessoas mais próximas.
Com um sistema em que as condenações eram sumárias e baseavam-se simplesmente em delações, não havia confiança nem mesmo entre familiares. A engrenagem girava de forma que o carrasco de hoje provavelmente seria a vítima de amanhã, já que as pessoas não hesitavam em acusar o próximo a fim de salvar a própria pele:
A lógica era genial: a vítima é o carrasco, e no fim o carrasco também é a vítima. Como se isso não tivesse sido inventado por um ser humano… Algo tão perfeito assim só existe na natureza. A roda gira, mas não há culpados. Não há! Todos querem que tenham pena deles. Todos são vítimas. No fim da cadeia, todos.
A maneira como o personagem de Stiopa é exposto, minutos antes de ser despachado para Ialta, é bem característica desse modelo de delações. O séquito do diabo começa a entregar todas as faltas e vícios do diretor do Variedades, acusando-o de negligência no uso do cargo e dos bens públicos, além dos seus excessos com a bebida.
Por todas essas referências, não à toa, o autor morreu sem ver sua obra publicada, por temor à reação que ela causaria. O Mestre e Margarida só seria editado em 1966, primeiro em Paris. Uma versão na Rússia só apareceu em 1973.
Se o paralelo é evidente, uma obra-prima como esse clássico russo, permite interpretações e leituras múltiplas. Quem acha que entendeu tudo obviamente não entendeu nada.
Muitas vezes, nos perdemos na complexidade de tramas, personagens e situações.
Como escreve Alberto Manguel em Uma História Natural da Curiosidade,
Especialmente quando lemos o que, por falta de termos mais precisos, concordamos em chamar de “grande literatura”, nossa capacidade de assimilar o texto em toda a complexidade de suas múltiplas camadas fica aquém de nossas vontades e expectativas, e somos compelidos a voltar ao texto mais uma vez na esperança de, agora, talvez, alcançarmos nosso propósito.
Como ressalta o próprio Manguel, essa é uma tarefa em que, ainda bem, sempre falhamos. Nenhum leitor consegue exaurir as profundezas de um livro como esse, e é por isso que os clássicos ganham esse nome: sua leitura é atemporal e as interpretações possíveis, inesgotáveis.
Achados & Lidos
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