Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.
A emblemática frase de O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (TAG Livros/Companhia das Letras, 381 páginas), resume com exatidão a sensação de resignação que nos devora quando somos confrontados com grandes mudanças. Não à toa, é um dos aforismo mais conhecidos da literatura.
Dita por Tancredi, sobrinho de Fabrizio de Corbèra, príncipe de Salina e personagem central neste romance, a frase indica a inevitabilidade das transformações que marcariam a Itália na segunda metade do século XIX. O Leopardo retrata justamente esse meio século de profundas alterações no cenário econômico, político e social do país, com a unificação da Itália, até então dividida em reinos sob o domínio de potências estrangeiras, a ascensão da burguesia e o ocaso da nobreza.
Fabrizio, o Príncipe, é parte justamente da aristocracia que está perdendo espaço. Tancredi, o sobrinho, é o símbolo da nova geração. Sem grandes heranças ou propriedades, dilapidadas por seu pai, Tancredi precisa que tudo mude para manter seu status. Quando enxerga a inevitabilidade da anexação da Sicília, o jovem, com sua personalidade sedutora e flexível, toma parte nas tropas de Giuseppe Garibaldi, que desembarca em Marsala para incluir os Estados no Sul no processo de unificação.
O Príncipe teve uma de suas visões repentinas: uma cena cruel de guerrilha, disparos nos bosques, e seu Trancedi caído no chão, desventrado como aquele soldado infeliz. “Você está louco, meu filho”. Meter-se com aquela gente! São todos mafiosos e trapaceiros. Um Falconeri deve permanecer conosco, pelo Rei.” Os olhos voltaram a sorrir. “Pelo Rei, com certeza, mas por qual Rei?”. O rapaz teve uma de suas crises de seriedade, que o tornavam impenetrável e adorável. “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a república. Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”. Abraçou o tio um tanto comovido. “Até breve. Voltarei com a bandeira tricolor.”
Mais do que a adesão às tropas revolucionárias, Tancredi se alia também à efervescente burguesia local, por meio do casamento, o contrato social mais antigo de que se tem notícia. Angelica, a bela filha de dom Calogero, burguês que enriqueceu com a compra de terra de nobres decadentes, alia o dinheiro e a beleza. Com esses dois atributos, o Príncipe não pode ter outra atitude senão concordar com o casamento, ainda que isso o leve a uma série de reflexões, especialmente por estar unindo sua família a de dom Calogero, ao qual ele despreza por seus hábitos mundanos e falta de bom gosto.
De repente Dom Fabrizio sentiu que o odiava – sua ascensão, a ascensão de centenas de outros como ele, suas obscuras transações, sua tenaz avareza e avidez, era por tudo isso que se alastrava o sentimento de morte que agora entristecia esses palácios; devia-se a ele, a seus comparsas, a seus rancores, a seu senso de inferioridade, a seu fracasso em desabrochar, o fato de agora também ele, Dom Fabrizio, associar os trajes negros dos bailarinos a corvos que planam em busca de carne podre, acima dos vales mais remotos. Teve vontade de responder com rispidez, de convidá-lo a retirar-se. Mas não podia: ele era um convidado, o pai da querida Angelica.
As passagens mais reflexivas detalham com minuciosidade a opulência – e a decadência – da nobreza, com seu mobiliário, seus grandes aposentos, suas joias. A descrição do baile em Ponteleone, por exemplo, é exuberante, com suas taças de cristais e banquetes de doces, em uma festa que ficou para sempre imortalizada no filme de Luchino Visconti.
O Príncipe, contudo, também pensa muito sobre a morte, sua finitude e, consigo, de sua família, já que os herdeiros deixariam de se ver como integrantes da nobreza. Por vezes melancólica, essas são passagens belas, mas ao mesmo tempo um pouco enfadonhas.
Justamente por esse raciocínio e sua ligação umbilical com a literatura francesa, na qual o autor se inspira ao rechear o livro de descrições de ambientes, costumes e trajes, o livro quase não foi publicado. Foi considerado muito conservador, também por suas descrições das forças atávicas que moviam a Sicília, fadada à miséria pelo clima tempestuoso, com o sol inclemente durante o verão, e um dilúvio no restante do ano. Acabou sendo editado após a morte do autor, em 1957. Seria o livro mais vendido de um autor italiano até O Nome da Rosa, de Umberto Eco.
Lampedusa, curiosamente, dedicou sua vida toda às letras, mas foi um homem de um livro só. Só se colocou a escrever depois de acompanhar um primo poeta a uma convenção literária, na qual ele seria premiado. “Estando matematicamente certo de que eu não era mais estúpido do que Lucio, sentei à minha escrivaninha e escrevi um romance”, escreveu a um amigo em uma carta, segundo um dos textos de apoio da TAG. Foi assim que se originou um dos clássicos da literatura italiana.
A edição da TAG, aliás, com tradução de Maurício Santana Dias, é uma das mais bem acabadas enviadas aos assinantes do clube. Feita em parceria com a Companhia das Letras, a edição conta com posfácio do tradutor e índice cronológico, para familiarizar o leitor com a história italiana. Vale o mergulho!
Tainara Machado
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