Contos são, no geral, narrativas bastante lineares. A concisão se faz necessária, e a adoção de uma estrutura narrativa mais simples, em que um personagem domina a ação até seu desfecho, é a construção que comumente funciona no gênero.
Sergio Sant’Anna, um dos maiores contistas brasileiros em atividade, subverte esse padrão em O Conto Zero e Outras Histórias (Companhia das Letras, 173 páginas, três estrelas), lançado em 2016. Logo no primeiro texto, o autor usa da metalinguagem para nos colocar de frente para a página em branco e a decisão de escrever ou não uma história, “que ficaria dias e mais dias rondando a sua cabeça”.
O conto, que aos poucos ganha forma por meio de viagens consecutivas – de ônibus no Rio de Janeiro, de metrô em Londres -, é repleto de autorreferências sobre a infância e juventude de Sant’Anna e sua formação sentimental ao lado do irmão mais velho. Os constantes deslocamentos dos personagens parecem simbolizar a viagem no tempo em que mergulha o autor, pois também as memórias parecem vagar em nossa alma, para de repente chegar ao seu destino.
O autor também não deixa de refletir sobre a importância daquelas viagens, o “marco zero” de sua vida, sobre o qual seriam adicionados camadas de entendimento nos anos vindouros, aquele verniz que podemos aplicar aos fatos somente com distanciamento do passado, que nos permite entender nossa própria história por outra perspectiva.
Antes disso você não conservava uma memória e era como se fosse ninguém. Era um momento zero em sua vida, como se nem mesmo o mundo existisse.
A passagem do tempo e seu efeito sobre a memória são, aliás, a matéria-prima desse livro. Sant’Anna parece olhar, de seus setenta e tantos anos, para o passado na busca pelos marcos zeros da vida. Nem sempre o que se encontra é o renascimento. As catarses pessoais, representados por um inseto, por uma cena inusitada na rua ou pelo fim de um romance que já se anunciava, podem assomar com mais força.
Flores Brancas é, sem dúvidas, o conto que mais me impactou nesta leitura. Li a história do romance de um professor de comunicação casado com uma aluna, Lucrécia, como se estivesse lendo o roteiro de um dos episódios de Relatos Selvagens, filme do argentino Damián Szifron que, em fragmentos de histórias, escancara a banalidade da loucura e a selvageria para a qual todos nós, com relativa facilidade, podemos resvalar.
Neste conto, o narrador e Lucrécia acabam juntos, desfazendo seus relacionamentos, em uma história de amor tão afundada na paixão quanto no ciúmes. Os dois acabam por se isolar em uma casa no bairro de Venda Nova, mas o desgaste do tempo e dos sentimentos comezinhos acaba esgarçando a relação, rompida em uma cena que beira o surreal – complementada pela tragédia urbana que é o terminal de ônibus de Belo Horizonte.
O Conto Zero também guarda outras joias, como a história do funcionário do comércio de rua marcado por uma boa e uma má ideia, enlouquecido por superstições vagas, às quais atribui poder decisivo. Sant’Anna também relembra seus anos no International Writing Program, sua temporada no meio-oeste americano em meio a escritores de diversas nacionalidades, em um ambiente efervescente, repleto de álcool e outras drogas.
Mesmo ao tratar de lembranças, de paixões e da juventude, Sant’Anna o tempo todo busca se distanciar da prosa poética, “essa escrita intolerável”, como ele mesmo afirma em determinada altura do livro. O Conto Zero abriga uma miríade de estilos, do discurso direto aos fragmentos de memórias, sem nunca esquecer o que é mais relevante: a força das histórias.
Tainara Machado
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