As distopias voltaram a ganhar espaço nas prateleiras de livrarias ao longo do ano passado, à medida que o mundo real parecia se aproximar cada vez mais dos sombrios totalitarismos expostos na ficção, com a ascensão da extrema direita que culminou na eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.
Em consonância com esse momento, a editora Aleph lançou no ano passado uma nova (e caprichadíssima) edição de Nós (323 páginas, quatro estrelas) , do russo Ievguêni Zamiátin, um dos precursores do gênero. Escrito em 1924, o romance foi censurado na União Soviética, por ter sido considerado ˜ideologicamente indesejável˜, e foi publicado primeiro em inglês, nos Estados Unidos.
O regime russo ainda estava distante dos expurgos de 1936, mas já se incomodava com o mundo mecanizado imaginado por Zamiátin nesta história. Passada em um futuro alguns séculos distante, escrito na forma de diário, o romance retrata a vida de D-503, um engenheiro totalmente fiel aos preceitos do Estado Único.
Mais do que antecipar uma crítica ao totalitarismo que dominaria a Rússia com a ascensão de Stálin ao poder, contudo, a distopia de Zamiátin crítica principalmente o crescente domínio das máquinas sobre a vida, com a normatização dos hábitos, reduzindo a individualidade humana. Em vez de nomes, as pessoas recebem números, iniciados por uma consoante ou uma vogal, a depender do sexo. O “eu” e o “nós” se misturam, como reflete D-503 em certo momento, quando decide dar um título a suas anotações. O que importa é o coletivo.
Tudo é controlado pelo Estado. O ritmo da vida, da ingestão de alimentos (com 50 mastigadas por garfada) ao sono e o trabalho físico, é regido pela Tábua das Horas, baseada no regime taylorista de produção, que previa o menor custo possível, com a redução da ociosidade dos fatores de produção. Para facilitar o cumprimento dessas determinações e a vigilância dos Guardiões, as casas deixaram de ter paredes, feitas todas agora de vidro. As cortinas podem ser fechadas apenas na hora íntima, quando números pré-registrados podem manter relações sexuais, com o devido consentimento do governo.
A natureza (e tudo o mais que ainda guarda algum vestígio de espontaneidade) foi banida e existe apenas por trás do Muro Verde, os limites da cidade que D-503 habita. As tempestades são controladas e a comida é feita à base de petróleo. Esse cenário sombrio, no entanto, é propagandeado como a mais plena felicidade, já que somente na ausência da liberdade seria possível ser feliz.
D-503, construtor da máquina que pretende levar esse modelo para outros planetas, é uma peça que funciona de acordo com as regras desse modelo, até que ele se apaixona por um número misterioso, I-330, e desenvolve uma doença perigosa: a imaginação.
É claro: estou doente. Nunca havia sonhado antes. Dizem que sonhar era a coisa mais cotidiana e normal na época dos antigos. Pois, sim, toda a vida deles era esse carrossel terrível: verde, laranja, Buda, suco. Mas nós sabemos que os sonhos são uma séria enfermidade psíquica. Eu também sei que até agora meu cérebro tem sido cronometricamente regulado, um mecanismo brilhante sem nenhum grão de poeira, mas agora…
Nós foi, visivelmente, fonte de inspiração para muitas das distopias que seriam publicadas nas décadas seguintes, embora a narrativa, em primeira pessoa, seja um pouco arrastada e por vezes confusa.
Como aponta George Orwell em resenha publicada originalmente na revista Tribune, são claros os paralelos entre o Estado Único de Zamiátin e o totalitarismo de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O próprio Orwell acabaria recorrendo a essas ideias em 1984, também sobre um mundo em que a individualidade cedeu espaço para um completo domínio do Estado sobre os cidadãos, podendo-os vigiar inclusive em suas casas, por meio do Grande Irmão.
Mais recentemente, Margaret Atwood criou um mundo em que as mulheres são cidadãs de segunda classe, com funções unicamente reprodutoras, sem poder criar seu filhos, em O Conto da Aia. Em Nós, os laços entre mães e filhos também inexistem, como percebemos no diálogo entre D-503 e sua parceira, O, que sabe que perderá a vida e o contato com o filho caso decida engravidar.
Ao contrário dos demais livros, no entanto, D-503 nunca chega a verdadeiramente questionar a situação em que se encontra. Embora adote comportamentos que confrontam as regras do Estado Único para poder seguir e acompanhar I-330, em certo momento apoiando a revolução, o engenheiro acaba se desvencilhando de sua loucura por ter sua imaginação extirpada pelo Benfeitor, a mistura de homem e máquina que governa o Estado Único. Talvez Zamiátin já vislumbrasse que não há melhor arma para sufocar revoluções do que usar os próprios cidadãos como massa de manobra.
Tainara Machado
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7 de agosto de 2019 at 02:17
Foi uma boa resenha e me deixou interessado em ler este livro, ja li 1984 e Admiravel Mundo Novo, curto bastante distopias. o erro de vcs foi comparar distopia com a eleição de Donald Trump qdo foi justamente o contrário que ocorreu, visto que a esquerda e o globalismo tem a tendência de impor totalitarismos, e Trump é justamente contra isso.