Gente Pobre, primeiro romance de Fiódor Dostoiévski, foi publicado quando ele tinha apenas 25 anos. Antes mesmo do lançamento oficial do livro, o escritor já era sensação nos círculos literários russos, que se surpreenderam com a nova abordagem que o jovem trouxe à chamada “escola natural”, corrente do realismo russo em voga na época.
Nesse romance epistolar, Dostoiévski conta a história de Diévuchkin, um funcionário público das escalas mais baixas, e Varvara, uma jovem órfã e injustiçada. Por meio das cartas que os dois amigos trocam, nota-se que, a despeito de toda penúria de recursos que enfrentava, Diévuchkin age como um verdadeiro protetor da garota. Ela, por sua vez, também sempre se mostra disposta a ajudá-lo, sem se importar com os mexericos que tal relação poderia suscitar.
A pobreza dos personagens contrasta com a nobreza de seus sentimentos – uma fórmula até então tímida na literatura russa. Dostoiévski arrisca-se evidenciando que os pobres também eram capazes do comportamento virtuoso que se imaginava exclusividade dos ricos generosos. A classe que sempre fora retratada como receptora da bondade alheia se manifesta solidária, de maneira ainda muito mais genuína do que aqueles que abdicavam de recursos que não lhe fariam falta.
Dostoiévski retrata as classes oprimidas sem cair em uma análise excludente ou superficial, como acontecia nos ensaios fisiológicos dos tipos urbanos, que se apoiavam no mote clichê do homem pobre com destino trágico, uma vítima passiva de infortúnios.
Diévuchkin e Varvara são personagens complexos, que pensam, se posicionam e agem diante das situações desfavoráveis que lhes são impostas. O enredo de Dostoiévski nega essa visão simplista em relação aos pobres, como bem observa Diévuchkin neste trecho:
Porque num homem pobre, na opinião deles, tudo deve estar virado do avesso; porque ele não deve ter nada de secreto, nenhuma vaidade que seja, de jeito nenhum!
Neste romance, também fica clara a maestria do escritor russo em abranger em uma única história diversos tipos sociais, dos mais abastados aos menos privilegiados. Dostoiévski mergulha pela primeira vez na miséria dos apartamentos alugados de São Petersburgo, ambiente que seria uma constante em seus romances futuros. Nesse entorno, aparecem as figuras do agiota, da senhoria, do bêbado, do senhor de terras, do mujique e tantas outras que pintam com cores tão vivas a sociedade russa.
Muito além de um cenário, Dostoiévski usou esse ambiente para marcar também sua linguagem, contrariando as tendências literárias de então, que permitiam um retrato da pobreza, mas exigiam que se guardasse a linguagem culta nada representativa dessa classe. As cartas de Diévuchkin a Varvara transbordam oralidade, o que tornou a escrita de Dostoiévski alvo de pesadas críticas. Diziam que seu texto era sem acabamento, prolixo e repetitivo. Hoje, essa marca do escritor é reconhecida como um dos vários recursos estilísticos que comprovam sua genialidade literária.
Impossível ler Gente Pobre sem lembrar da obra de outro gênio, a quem Dostoiévski lia avidamente. Desde o título, o romance já guarda similaridades com Os Miseráveis, de Victor Hugo, que seria lançado décadas mais tarde. O russo e o francês são mestres do romance social e souberam, como poucos, retratar sua época sem abrir mão da universalidade.
O texto de Dostoiévski é único e faz o leitor viajar por séculos (quase 200 anos, hoje) sem tirá-lo da contemporaneidade. Como ele consegue esse feito? Mergulhando, com a mesma intensidade, nos bairros da Rússia do século XIX e na alma humana, que não tem data, raça ou classe social.
Mariane Domingos
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