Nasci duas vezes: primeiro como uma bebezinha, em janeiro de 1960, num dia notável pela ausência de poluição no ar de Detroit; e de novo como um menino adolescente, numa sala de emergências nas proximidades de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974.
Middlesex, segundo romance de Jeffrey Eugenides, publicado em 2002, é, desde o princípio, claro sobre a história que será narrada: a vida de uma menina que, por uma alteração genética desconhecida e rara, se descobriria um menino na adolescência. Calíope Stephanides, que se tornaria Cal anos mais tarde, é hermafrodita. Um assunto que continua sendo tratado com preconceito e estranhamento, ainda que hoje se fale com um pouco mais de naturalidade sobre identidade de gênero, é o tema de um romance épico sobre formação e sexualidade.
O romance, com ares de odisseia familiar, é muito bem construído. Eugenides opta por dedicar por parte do livro à trajetória da família Stephanides, perfazendo o caminhos percorridos por uma mutação genética, a 5-alfa-redutase, de baixíssima incidência, que irá definir o destino da personagem central do livro
A história começa com um episódio inusitado, a cerimônia da colher. Embora seja narrado em primeira pessoa, por Calíope/Cal, o narrador é onisciente quando se trata dos fatos anteriores ao seu nascimento. Presenciamos assim o momento em que Desdêmona balança a colher de prata guardada na caixinha de bichos da seda que trouxe consigo da Europa e diz que o segundo bebê de Tessie e Milton seria um menino.
Essa seria a primeira vez em dezenove palpites que Desdêmona erraria sua previsão, embora saibamos que, no fim das contas, ela não estava assim tão enganada. Calíope nasceria com órgãos masculinos escondidos, longe da visão do já idoso médico da família, e por isso seu hermafroditismo só seria diagnosticado anos mais tarde.
Mas, antes disso, acompanhamos a saga da família, da adolescência dos avós em um minúsculo vilarejo grego ao seu desembarque nos Estados Unidos, da prosperidade descoberta na América aos solavancos da economia, do casamento dos pais ao nascimento de Calíope: a epopeia da família grega nos Estados Unidos mostra que a História, aquela dos grandes acontecimentos, com suas poderosas engrenagens, é a força que nos esmaga e nos empurra, sendo ela a grande responsável por nossos destinos.
Se somos produto do nosso tempo, à mercê de velhas superstições ou de pensamentos já antiquados, a ciência também flutua ao sabor dos padrões culturais de uma época. Ao tratar de um assunto delicado e íntimo com extrema suavidade, Eugenides aponta suas armas para o cientificismo exagerado com que tratamos dilemas humanos.
Quando Calíope entra na adolescência e começa a se deparar com os questionamentos comuns à idade – sobre o próprio corpo, sobre a aparência, sobre desejo -, o que vemos são os dilemas pelos quais todos nós passamos em algum momento.
O poder de articular narrativas e histórias faz com que Calíope induza o Dr. Luce, fundador da Clínica de Disfunções Sexuais e Identidade de Gênero, ao erro, tão ávido estava o especialista em confirmar suas teorias. Como escreve o autor,
Não chega a ser uma surpresa que a teoria de Luce sobre a identidade de gênero tenha sido popular no começo dos anos 1970. Naquela época, nas palavras do meu barbeiro, todo mundo estava querendo ser unissex.
Dr. Luce acreditava que, apesar do status cromossômico masculino, Calíope havia sido criada como menina e, por isso, sua identidade era uma construção social, com papel preponderante em relação aos determinantes genéticos. Eugenides, contudo, busca refutar os cientificismo nesse assunto tão delicado, colocando a personagem central numa busca por identidade que nunca estaria completa. Embora sentisse atração por mulheres, Cal nunca se sentiria completamente à vontade em banheiros masculinos, ou entre homens.
A leitura de Middlesex, como toda boa literatura, nos faz questionar certezas pré-concebidas, despindo a vida de Calíope/Cal de conceitos pré-moldados. A narrativa fluída, entremeada de episódios corriqueiros sobre a vida familiar, com suas glórias e tragédias, nos leva a navegar pelas páginas rapidamente, lembrando sempre que na construção de identidade – não importa se de gênero ou não – nós somos um amálgama das relações que nós e outros travamos com o mundo. Ou, como belamente escreve o autor:
Todos somos feitos de muitas partes, de outras metades. Não apenas eu.
Tainara Machado
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