Os dois primeiros capítulos de Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga, nos deram uma ideia do contexto da narrativa. Conhecemos a história do liceu que dá título ao livro e, por meio dela, vislumbramos a história social e política do povo ruandês. Para a próxima semana, avançamos até a página 67.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Antes de introduzir de maneira mais detalhada os personagens, Mukasonga trabalha na descrição dos ambientes. A partir de algumas histórias – como a da santa que nomeia o liceu e a da construção do colégio –, entendemos a configuração da sociedade ruandesa de então.
Já notamos a sutileza da escrita de Mukasonga. Ela é uma exímia contadora de histórias e os fatos que envolvem sua ficção dificilmente aparecerão diretamente, sem ter uma anedota que os embale.
Sua narrativa oscila no tempo justamente para viajar ao passado e montar o quebra-cabeça que explica o porquê da situação atual. É dessa forma, por exemplo, que Mukasonga resgata, primeiro, o período em que Ruanda era colônia da Bélgica e, depois, a dominação hutu no pós-colonial.
A primeira cena é uma descrição do local de difícil acesso em que está instalado o liceu. Aos poucos, chegamos à imagem da santa que guarda as redondezas do colégio para, em seguida, sermos deslocados ao passado e ouvirmos relato do dia em que ela foi parar ali.
Esse episódio traz um desenho da sociedade colonial e da imposição religiosa que lhe é implícita. A procissão que levou a santa até o local mostra como a voz do povo nativo era irrelevante para decisões que marcaram sua história e sua terra. Enquanto os religiosos se colocam no centro do procissão, escoltando a santa, a maioria do povo ruandês é simples espectadora.
A grande surpresa do evento acontece quando o véu que está sobre a imagem é retirado. Nossa Senhora do Nilo era negra, assim como seus conterrâneos, mostrando a habilidade da Igreja Católica para ganhar terreno em sua cruzada. A identificação é o primeiro passo para conquistar seguidores e assim o sabiam os religiosos. O discurso do monsenhor vigário dava o tom de um encontro feliz e natural da África com o catolicismo – um casamento que levaria ao progresso:
… é como se essas gotas sagradas, benditas pela graça da Nossa Senhora do Nilo, pudesse batizar a África inteira e, esta África, tornada cristã, pudesse salvar o nosso mundo em perdição.
Décadas depois, a imagem ainda está ali, marcando a paisagem ao redor. Mas o mesmo não se pode dizer dos privilegiados à época da procissão. E não nos referimos aos religiosos, que continuaram agentes decisivos da história de Ruanda, mas sim à elite tutsi, que foi substituída pela elite hutu quando da independência do país. Essa substituição não foi um processo tranquilo, como bem expressa este trecho em que fotos do dia da procissão, antes expostas nas paredes do colégio, foram encontradas entre as velharias esquecidas na biblioteca:
Quase todos esses personagens importantes estavam riscados com caneta vermelha, e alguns outros tinham por cima um ponto de interrogação feito com caneta preta.
– As fotos dos chefes sofreram uma “revolução social” – disse Gloriosa, rindo. – Um risco de caneta, um golpe de marreta e pronto…, acabaram-se os tutsis.
A anedota que ilustra essa mudança de poder é muito interessante, porque carrega a força da narrativa de Mukasonga. Ao relembrar a história da construção do liceu, um destino se sobressai: o de Gakere.
Antes da independência, ele era um subchefe da região, mas foi substituído por um líder hutu pelas autoridades coloniais. Retirado à força de sua posição, Gakere manteve ainda certo status como contador do canteiro de obras da construção, responsável pelo pagamento de salários aos funcionários. Até o dia em que ele sumiu com a caixinha repleta de finos maços, em busca da fronteira com o Burundi.
Por fim, encontraram-no à beira do pântano, esgotado e magro, com as pernas inchadas. As notas tinham virado uma pasta esponjosa boiando dentro da caixinha cheia de água.
A escolha dessa história não é fortuita: o ocaso desse personagem parece ilustrar o destino de toda uma população que passou a ser marginalizada com a alçada ao poder dos hutus.
Esse conflito étnico também transparece nas relações entre as meninas que frequentam o liceu, na descrição da chegada de luxuosos carros ao colégio. Uma das personagens, com a fala repleta de ódio, prega o fim das “cotas”, uma política que limitava o número de tutsis nos colégios católicos a um total de 10% dos alunos.
Assim, nessas primeiras páginas de ambientação, já pudemos perceber o tom de tensão sutil que deve dominar o restante do romance. O ódio instilado entre crianças, uma das formas mais eficazes de proliferação da intolerância, desperta particular atenção nestes primeiros capítulos.
Agora queremos saber qual trecho chamou mais atenção de vocês!
Achados & Lidos
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30 de agosto de 2017 at 15:01
Concordo com tudo o que você disse.
A forma como ela narra me lembrou o oficio do contador de histórias, tão essencial para que a memória não se perca. Também notei que o Liceu é mais um personagem da trama, como se ele tivesse vida e personalidade.
As jovens, no seu falar, refletem todo o estado da sociedade. A forma como elas interagem entre si e enxergam as outras e a maneira que seus país agem no cotidiano. O preconceito e o discurso de superioridade vão crescendo junto delas.
Até a próxima semana!
31 de agosto de 2017 at 23:49
Bem observada a questão dos contadores de história, Debb. Na leitura dessa última semana, esse aspecto ficou ainda mais evidente!
Quanto ao liceu como um personagem, concordo totalmente. Ele abriga, literalmente, todas as tensões de uma sociedade.
Esperamos você no post de amanhã! 😉
22 de setembro de 2017 at 16:54
Primeiramente, meus parabéns pelo Achados e Lidos, estou encantado e feliz de encontrar um trabalho tão bem feito, tão leve e profundo ao mesmo tempo. Curiosamente, encontrei vocês quando estava procurando ler mais alguma coisa sobre a autora, depois de ler A mulher de pés descalços, livro que me deixou “engasgado”. Acho que os dois são complementares: Nossa Senhora do Nilo, passado perto das nascentes do rio, explica como nasceu tanto ódio. Nesse sentido, a personagem mais marcante nestas primeiras páginas é a terrivel Gloriosa, pesada de corpo e alma, incorporando os preconceitos dos novos donos do poder.
P.S: Já recomendei vocês para todos meus amigos e amigas no Facebook
1 de outubro de 2017 at 16:40
Olá, Marcos! Nós é que agradecemos por seus elogios e participação! Comentários como o seu nos estimulam a continuar por aqui e procurar sempre trazer novidades e leituras interessantes! Continue acompanhando conosco a leitura de Nossa Senhora do Nilo, um livro que, como você comentou, contribui para nos fazer dar um passo atrás e entender como tanto ódio foi gerado!