O anúncio recente da premiação do escritor israelense David Grossman no Man Booker International Prize 2017, pelo romance O Inferno dos Outros, me fez tirar esse livro da prateleira, onde ele estava, um tanto esquecido, desde uma daquelas compras impulsivas, movidas a descontos imperdíveis.
A trama tem uma ambientação inusitada. Ela se desenrola durante um show de stand-up do humorista Dovale, em Netanya, uma pequena cidade israelense. Se você, como eu, não é grande fã desse tipo de espetáculo, irá avançar pelas primeiras páginas com desconfiança.
O início é um pouco pesado, por causa das piadas não muito engraçadas, das descrições minuciosas da aparência e dos movimentos de Dovale e também pelos momentos constrangedores, tanto para plateia quanto para o humorista, típicos desse tipo de show. Mas antes que eu sentisse vontade de desistir, Grossman joga a primeira isca: o narrador que parecia ser onisciente é, na verdade, um narrador em primeira pessoa. É alguém que está na plateia e que conhece Dovale.
À medida que a leitura avança, descobrimos que se trata de seu amigo de infância, o juiz aposentado Avishai Lazar. Ele havia recebido uma ligação do humorista, com quem não tinha nenhum contato há décadas, pedindo que ele assistisse à sua apresentação e, depois, contasse-lhe o que havia enxergado. De início, Lazar sequer lembra quem era Dovale. Na verdade, ele só irá recordar totalmente durante o espetáculo.
Um pouco contrariado, o juiz vai ao bar e, no começo, tem a mesma sensação que eu tive nas primeiras páginas de leitura: ele quer ir embora. Grossman cria, habilmente, uma espécie de empatia entre leitor e narrador. Sentimo-nos no lugar de Lazar, incomodados e curiosos ao mesmo tempo. Uma combinação que não nos deixa largar a leitura, assim como Lazar não consegue sair daquela cadeira.
O que parecia ser um stand-up comum, com piadas genéricas que se arriscam nos limites do politicamente correto para temas como política, religião e gênero, acaba mudando de rumo e se transforma em uma espécie de desabafo de um adulto que sofreu diversos traumas na infância e adolescência. Dovale escancara sua alma e revela os caminhos, nada agradáveis, que o levaram àquele palco. A atratividade de sua performance é surpreendente, como nota o próprio narrador:
Eu me pergunto como ele conseguiu alcançar isso. Como, em tão pouco tempo, ele conseguiu transformar o público, e de certa forma até mesmo a mim, em habitantes da sua alma? Em reféns dela?
Mesmo com todo desconforto causado pelo seu humor autodepreciativo e por um relato que indica um desfecho trágico, as pessoas continuam atentas. O comportamento humano diante da miséria alheia é central no romance. Este poderia ser um livro comum de um personagem que revela seus traumas ao revirar suas memórias, por exemplo. Mas Grossman garante a originalidade da narrativa ao colocar o drama de Dovale no formato de um stand-up. Neste trecho, que é uma observação do narrador Lazar, sua proposta fica clara:
As pessoas se entreolham e se agitam, inquietas. Entendem cada vez menos que coisa é essa da qual estão participando contra a vontade. Não tenho dúvidas de que já teriam se levantado e ido embora há muito tempo, ou até mesmo enxotado Dovale do palco com assobios e gritos, não fosse essa tentação difícil de resistir: a tentação de espiar o inferno dos outros.
Tanto quem permanece até o final do show quanto quem vai embora antes têm algo de condenável em sua postura. Os que partem assinalam sua indiferença. Os que ficam revelam uma curiosidade mórbida.
Nesse contexto, a escolha de um narrador que tinha como profissão dar vereditos não é despropositada. Quando liga para o amigo, Dovale procura alguém capaz não apenas de ouvi-lo, mas, principalmente, de julgar sua história de vida.
O personagem Lazar é mais um destaque do romance de Grossman. O stand-up de Dovale é intercalado pelas observações do juiz acerca da plateia e também por suas lembranças, que esclarecem um passado em comum com o humorista e revelam alguns dos seus próprios fantasmas. Enquanto Dovale escancara seu drama no placo, Lazar envolve o leitor com devaneios breves e profundos, que permitem vislumbrar sua solidão desde a morte da esposa. É como se o sofrimento de Dovale despertasse reflexões das quais o juiz, até então, havia tentado fugir.
Grossman é muito bem-sucedido nessa difícil tarefa de equilibrar tipos complexos em uma narrativa complexa. Trazer a linguagem de um stand-up para as páginas de um livro, dando conta das reações da plateia e do desgaste emocional dos personagens, é um esforço louvável. O formato, que no início me deixou desconfiada, mostrou-se mais do que acertado. É um livro que nos faz pensar sobre quantas vezes em nosso cotidiano encaramos as experiências alheias, e às vezes as nossas próprias, com tão pouca empatia e verdade. Deixamos reinar o desconforto silencioso e aquele constrangimento disfarçado pelo humor de quem prefere a artificialidade do riso à realidade do choro.
Mariane Domingos
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