Em um ano e meio, Tomás vê sua vida dar uma reviravolta que o tira do eixo em todos os sentidos – pessoal e profissional. Esse é o objeto da história de O Ventre da Baleia, livro do escritor espanhol Javier Cercas, que pode ser caracterizado como um drama cômico, com pitadas de romance policial.
Como o próprio Tomás, o narrador-personagem, define, trata-se de uma “história inventada, mas verdadeira”, uma “crônica de verdades fictícias e mentiras reais”. O ponto de partida para a trama pitoresca é o seu reencontro com Claudia, uma paixão platônica da adolescência que volta à sua vida em uma situação casual, durante um fim de semana em que a esposa de Tomás, Luisa, estava fora da cidade em um congresso.
Quando se depara com Claudia, o narrador sente todos os desejos da longínqua adolescência voltarem com força para conduzi-lo à sua primeira infidelidade no casamento. A partir daí, uma sucessão de acontecimentos aniquila uma a uma as rotinas que lhe garantiam uma vida tediosa, mas bem equilibrada e planejada.
Professor assistente do departamento de estudos literários da Universidade Autónoma de Barcelona, Tomás segue os passos de uma carreira que tem tudo para se consolidar no meio acadêmico, ainda que tardiamente, considerando que alguns colegas de sua mesma faixa etária já ocupam o posto de professor titular. Luisa, sua esposa há cinco anos e com quem espera seu primeiro filho, também desfruta de uma sólida posição no meio acadêmico de História, o que colabora para a pressão do sucesso profissional de Tomás.
O fracasso é um tema que permeia, sob várias formas, a narrativa. Enquanto conta sobre um artigo que estava escrevendo e as discussões que teve com seu orientador a respeito, Tomás apresenta ao leitor o conceito de “personagem de caráter” e “personagem de destino”:
… o personagem de caráter é aquele que vive no presente puro, no puro borbulhar do instante, imerso no gozo permanente e sem finalidade da pura afirmação vital. O personagem de destino, ao contrário, não vive para o presente, mas para o futuro, pois só encontra satisfação no propósito realizado, um propósito que, de resto, uma vez alcançado, perde seu poder de atração e deve ser substituído por outro; portanto o personagem de destino troca a tranquilidade do personagem de caráter pela ansiedade sem fundo da conquista permanente.
Com habilidade, Cercas insere essa teoria na jornada do próprio Tomás. Na tentativa de compreender como chegou àquele ponto caótico, o narrador traça um paralelo entre sua realidade e os conceitos literários. O resultado final é a certeza de que os livros ensinam, sutilmente, valiosas lições para a vida.
A proximidade do narrador com a literatura é um trunfo desse romance. O texto é recheado de ótimas citações de grandes pensadores e análises de obras célebres. A certa altura, Tomás descreve uma tertúlia literária da qual participam seus colegas de trabalho. Lá, ele tem um encontro fortuito com um tal de Javier Cercas, um “professor de colégio com veleidades literárias”, cujo trabalho é menosprezado por Tomás. Essa mistura de realidade e ficção é uma marca do escritor espanhol, que aparece ainda mais forte em outros romances de sua autoria, como Soldados de Salamina.
A engenhosa construção dos personagens também é destaque da prosa de Cercas. Os comentários ácidos do narrador, que não pouparam nem a rápida participação do próprio escritor, rendem longas e ótimas descrições de perfis. São respiros muito bem trabalhados em meio às cenas de ação, pois destacam a riqueza do texto de Cercas. Neste trecho, por exemplo, o leitor tem a sensação de estar cara a cara com o amigo de Tomás, tamanha a precisão das adjetivações:
Marcelo tem uma carantonha de tartaruga triste, de bochechas carnudas e dentes desconjuntados e estragados pelo tabaco, mãos minúsculas, desajeitadas e vagamente infantis e, apesar das pernas tortas e de uma imensa barriga de Buda, fomentada por anos de fidelidade à vida sedentária, ao uísque e à boa mesa, conserva de sua juventude de dançarino de bailes de bairro uma soltura no andar que contrasta com o ar quase permanente de velho prematuro.
O escritor descreve seus personagens de maneira despudorada, escancarando suas fraquezas. Tomás, por exemplo, não tem medo de expor o ridículo que passou em diversas situações. Essa humanidade característica da prosa de Cercas fortalece a ligação com o leitor, na medida em que cria identificação. Por mais improváveis que pareçam alguns dos fatos que aconteceram naquele um ano e meio da vida do narrador, seu relato não é assim tão distante da realidade de outras pessoas:
(…) percebo que esta história não é única, porque nosso destino também não é, porque o que acontece com cada um de nós aconteceu também com outros, porque fazemos senão repetir e repetir, até a saciedade, uma aventura idêntica e surrada (…)
Em O Ventre da Baleia, Cercas convida o leitor a pensar sobre os rumos de sua existência, sem abrir mão de um texto bem-humorado e uma trama bastante inventiva. Diversão e reflexão garantidas!
Mariane Domingos
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