Há algumas semanas, esbarrei com uma reportagem bastante interessante. Um grupo de garotos, todos na faixa de 16 e 17 anos de idade, recebeu como punição por ter pichado um prédio com insultos racistas a tarefa de ler uma lista de clássicos da literatura de autores negros, afegãos e judeus (vale dar uma olhada na seleção de títulos aqui).
O objetivo, óbvio, era desenvolver nestes meninos a empatia pela história e pelo sofrimento alheios e fazê-los entender o poder devastador dos discursos de ódio. A juíza, Alex Rueda, filha de uma bibliotecária, declarou que a sentença partiu de sua própria formação, já que ela conheceu e compreendeu o mundo pelos livros.
A capacidade de nos colocar no lugar do outro é, sem dúvida, um grande valor da literatura. Mais do que nos levar a conhecer lugares distantes sem sair do sofá de casa, o poder dos livros reside principalmente em nos permitir compartilhar experiências coletivas, discriminação, sofrimento e abusos sem que essa seja nossa vivência imediata.
Enquanto eu escrevia esse texto, um colega, o Eliseu, nos recomendou um texto do The New York Times exatamente sobre o tema que eu queria discutir neste Divã. O escritor Hisham Matar foi direto ao ponto:
Livros não podem instalar sentimentos desconhecidos ou paixões em nós. O que eles podem fazer é desenvolver nossa vida emocional, psicológica e intelectual e, nesse processo, nos mostrar como e o quanto estamos conectados.
Uma criança que lê O Diário de Anne Frank consegue imediatamente simpatizar com aquela menina curiosa e cheia de dúvidas comuns a todos os adolescentes que acaba trancafiada por um longo período em um porão fugindo da perseguição nazista, com o triste destino que todos conhecemos. Ou refletir sobre coragem, injustiça e desigualdade com a história do menino que presencia uma cena de abuso de seu amigo e não toma nenhuma atitude, como em O Caçador de Pipas. Sob o ponto de vista do estilo e da linguagem, são livros bastante simples, mas capazes de contribuir para a formação de pessoas com visões mais amplas da sociedade, como queria a juíza Rueda.
Com a ascensão da extrema-direita, do radicalismo e da intolerância em muitos países, especialmente nos Estados Unidos depois da eleição de Donald Trump, a tarefa de criar empatia por uma história da qual não participamos, mas com a qual conseguimos nos identificar, passou a ser um dever e a literatura, uma ferramenta muito importante.
Nem todos os escritores, é claro, tomam por ofício combater desigualdades ou espalhar empatia, mas no contexto atual muitos têm se posicionado diante de um mundo cada vez mais dividido. A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, por exemplo, tem se destacado como uma grande defensora dos direito das mulheres, além de lutar contra o racismo. O português Valter Hugo Mãe é voz sempre a espalhar as memórias e os escombros da ditadura que muitos prefeririam que ficassem escondidos, além de ser um crítico contumaz da ascensão da extrema-direita, especialmente da eleição de Donald Trump. Ian McEwan posicionou-se contra a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, e abusou do sarcasmo em Enclausurado para pincelar a frágil situação dos refugiados, por exemplo.
Outras vozes que não ficaram caladas em tempos igualmente sombrios também voltaram a ser ouvidas. Seja a distopia imaginada por George Orwell em 1984, no qual um partido totalitário controla a linguagem, os pensamentos e as ações de uma sociedade desprovida de senso crítico, seja a análise das origens do mal por Hannah Arendt, as pessoas voltaram a imaginar os finais possíveis de uma guinada rumo à falta de liberdade.
A literatura e a política sempre andaram de mãos dadas, são indissociáveis, como nos lembrou Tatiana Salem Levy, em coluna publicada pelo jornal Valor Econômico nesta semana. Recentemente, na entrega do Prêmio Camões, o escritor brasileiro Raduan Nassar, considerado um dos mais importantes autores nacionais vivos, fez um duro discurso contra o governo do presidente Michel Temer. Concorde ou não com Nassar, é difícil aceitar o argumento de que seu papel era ficar quieto, ou então falar exclusivamente de literatura. Como escreveu Tatiana Levy, se fazemos política o tempo todo, por quê a literatura estaria à margem desse processo?
Tainara Machado
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20 de março de 2017 at 23:05
Adorei o texto, Tatá! Em tempos de intolerância, extremismos e fatos alternativos, não há nada melhor do que a literatura para iluminar nossas vidas.
24 de março de 2017 at 18:59
Muito obrigada, Eliseu! Com certeza, é um dos caminhos possíveis para nos iluminar em tempos sombrios 🙁
27 de março de 2017 at 02:24
Quais dos livros tem versões traduzidas para o português?
28 de março de 2017 at 14:44
Oi Reinaldo, tudo bem? Você fala dos livros da lista de leituras escolhida pela juíza? Consegui encontrar edições de A Cor Púrpura, da Alice Walker; O Sol Nasce para Todos, de Ernest Hemingway; O Caçados de Pipas e A Cidade do Sol, de Khaled Hosseini; O Sol é para Todos, de Harper Lee; A Vida Imortal de Henrietta Lacks, de Rebecca Skloot; A Banalidade do Mal, de Hannah Arendt; Infiel, de Ayaan Hirsi Ali. Espero que ajude! Tem algum livro em específico que você está procurando?
Abs,
Tainara