[Resenha] Para Você Não Se Perder No Bairro

Para Você Não se Perder no Bairro, do francês Patrick Modiano, é um livro curto, de menos de 140 páginas, mas isso está longe de significar uma leitura fácil. O oposto é mais verdadeiro. Essa é uma obra intrincada, repleta de idas e vindas, como se Modiano estivesse montando um quebra-cabeças a partir de fragmentos de memórias, em que cada peça puxa a próxima, até que a tela se complete. Mas, até o desfecho, muitos elos parecerão desencaixados.

A história começa com uma ligação um tanto sinistra. Um homem encontrou uma caderneta de telefones e pretende devolvê-la a seu dono, o escritor Jean Dagarane. Já sexagenário e com pouco contato com o mundo exterior, Dagarane se arrepende do descuido que foi ter colocado seu endereço e nome no pequeno caderno de telefones.

Com medo de ser seguido pelo autor do telefonema, ou encontrá-lo à espreita em sua porta, aceita comparecer ao encontro. Até então, ele vivia num limbo sem lembranças:

Se o sujeito desconhecido não tivesse telefonado, acabaria por esquecer para sempre a perda daquela caderneta. Tentou se lembrar dos nomes registrados nela. Na semana anterior, buscara resgatá-los da memória e começou a fazer uma lista numa folha em branco. A certa altura, rasgou a folha.

Gilles Ottolini, o homem que o procurou, buscava escrever um livros sobre uma investigação policial no qual se mencionava um sujeito chamado Guy Torstel. Esse mesmo nome constava no primeiro romance de Dagarane, do qual ele já mal se lembrava. Ottolini quer saber quem era aquele homem, mas o escritor não consegue, em um primeiro momento, situar onde tinha conhecido Torstel.

Como a madeleine de Marcel Proust, porém, Dagarane terá seu momento de redescoberta do passado. Em vez de um sabor, o que lhe desperta lembranças é uma palavra saída de um capítulo do livro de Ottolini sobre hipódromos.

LE TREMBLAY. E essa palavra detonou algo em sua mente, sem que soubesse exatamente o quê, como se um detalhe esquecido lhe voltasse aos poucos à memória.

A partir desse pequeno resgate, Dagarane encontra a ponta de um fio que forma um emaranhado de reminiscências sua infância, das quais ele tentou escapar durante toda a sua vida. A narrativa passa a ser envolta em certa aura de mistério, oscilando entre passado e presente, no qual a linha do tempo tem menos importância do que a capacidade de evocar fragmentos da história a partir de lugares e de nomes. “Tudo tinha a leveza de um sonho”, reflete o próprio personagem.

Modiano marca o ritmo Para Você Não se Perder no Bairro por endereços pelos quais o personagem principal passou ao longo de sua vida. Em cada casa, em cada quarto, em cada rua, Dagarane é capaz de encontrar mais uma peça para formar seu quebra-cabeças. É assim quando visita o imóvel de Saint-Leu-la-Forêt, onde viveu durante um curto espaço de tempo quando era menino. Ou quando a menção a um cassino finalmente lhe desperta a memória de onde teria conhecido Guy Torstel e sua relação com outra figura importante na sua vida.

Envolta em um ar de mistério, em nenhum momento a escrita de Modiano perde a elegância e a sutileza. O autor tem um prosa fluida, com frases límpidas, claras e belas, que formam bonitos aforismos, daqueles que a gente anota e rabisca na margem do livro, como esse:

(…) em períodos cataclísmicos ou de miséria moral, o único recurso possível para não despencar ladeira abaixo é buscar algum ponto fixo, a fim de manter o equilíbrio.

Sem inovações de forma ou conteúdo, Modiano consegue produzir uma obra que se distingue de tudo aquilo que já lemos. Não o conhecia antes desse post da Mari sobre autores que ela conheceu por causa do Prêmio Nobel, mas com certeza entrou para aquela lista de escritores dos quais apenas um livro não é suficiente para ter uma noção completa de sua obra. Quais outros títulos vocês indicam?

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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2 Comentários

  1. Ele possui um livro infantojuvenil que é super delicado, que possui uma leitura agradável. Foi editado pela Cosac Naify. A ilustração é de Sempé. Então, imagina como o livrinho não é lindo ❣️O título é FILOMENA FIRMEZA. Vale a leitura.

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