A conspiração entre Claude e Trudy chegou ao fim, mas isso está longe de representar um período de tranquilidade para o narrador, a quem já estamos apegadas. Daqui para frente, o ponto de interrogação em relação ao seu destino fica mais evidente. É a vez de perguntarmos: qual será o destino do feto? Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 147.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
A cada capítulo de Enclausurado, Ian McEwan nos dá uma nova aula sobre escrita. Pode soar repetitivo para os leitores que estão acompanhando os posts sobre o livro desde o início, mas é difícil não se impressionar com o domínio do autor inglês sobre a linguagem e a forma, que se reflete em descrições de ambientes, sentimentos e sensações que fazem com que a gente se sinta dentro do útero de Trudy.
O décimo primeiro capítulo poderia, sozinho, fundamentar uma aula de literatura. Primeiro, McEwan apresenta o possível resultado do plano de Trudy e Claude, no qual tudo corre bem, como o planejado: o corpo encontrado morto, com evidências de envenenamento; as motivações para o suicídio bem distribuídas pelo automóvel; a falta de entusiasmo da polícia com uma investigação corriqueira. Os elementos para que o assassinato funcione estão lá, mas McEwan não entrega o ouro de bandeja.
Antes, ainda precisamos acompanhar a partida de John, quando voltamos à plateia do teatro. Ali, McEwan descreve os movimentos do motor como um velho que não tem forças nem para tossir, e passamos a torcer, como o feto, para que o carro enfim dê o arranque. O automóvel enfim pega no tranco e Claude e Trudy encenam uma comemoração no quarto que, mais uma vez, nos faz ver que o bebê é a menor das preocupações deles.
Ao cair no sono, o feto, cada vez mais consciente, tem seu primeiro sonho.
Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando.
A noção vaga do que acontece nos sonhos nos permite um bom número de interpretações. O feto acompanha uma viagem a cavalo e a chegada de uma procissão ao Tâmisa, quando os cheiros de Londres se fazem presentes, o que parece uma viagem no tempo para séculos atrás. Numa mesa, encontra um homem que quer opinar sobre a história ou busca opiniões, o que bem pode ser uma menção à releitura que Enclausurado faz de Hamlet. Pode também ser seu pai, de quem busca certa absolvição. Todo esse mundo onírico, porém, se desfaz com a chegada brutal da realidade e da polícia, que bate à porta de Trudy.
O plano funcionou, mas instantaneamente sua mãe sente o mundo ruir. O narrador chega a torcer para que Leviatã – ou o Estado e sua prerrogativa de domínio da força – dê conta da vingança da qual se sente incumbido. Mas parece que o caminho não será assim tão fácil.
O que se segue ao anúncio da morte de John é uma confusão de sentimentos: excitação e autoconfiança, pelo lado do irmão da vítima, e culpa e medo, pelo lado de Trudy. Ela percebe que ir do plano à realidade não é uma transição tranquila:
Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas.
O breve interrogatório dos policiais despertam Trudy para o fato de que a verdade pode esmagá-la em um piscar de olhos. Basta uma escorregadela em um depoimento, para que o inquestionável ganhe ares de suspeito. O que parecia tão infalível mostra suas debilidades.
E o primeiro ponto fraco são os sentimentos de Trudy. Quem a viu tão decidida nos últimos capítulos não imagina o mar de arrependimento em que ela vai mergulhar. Claude tenta trazê-la de volta ao roteiro original, evocando seu ciúme por meio da figura de Elodia, mas as emoções da amante ainda oscilam perigosamente.
Essa situação traz também uma confusão de sentimentos ao feto, que desde o início do livro se debate entre o amor, que ele julga imperativo por estar ligado fisicamente à mãe e por depender dela, e o desprezo, pelas atitudes que ela toma:
Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.
A expectativa agora é o nascimento do feto. Quando nosso narrador sair dos bastidores e integrar efetivamente o elenco da peça, qual dos vários roteiros imaginados por ele irá se concretizar? O de abandono, o de justiça ou o de cuidados e amor incondicional da mãe? E também chegou a hora de perguntar: para qual final, nós, leitores, estamos torcendo? Ian McEwan nos mostra que o julgamento dos fatos nunca é tão claro e simples quanto parece, não importa se estamos nos bastidores, no palco ou na plateia.
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