Algumas revelações nessa última leitura tornaram a trama de Enclausurado ainda mais intrigante. O feto narrador aprofunda suas análises políticas e comportamentais, mostrando que os personagens dessa história, inclusive ele próprio, são mais complexos do que parecem. Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 68.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Quem é Claude? O maquiavélico amante de Trudy vai ganhando forma na história através da perspicácia do feto em captar o mundo exterior. No terceiro capítulo, nos surpreendemos, assim como o narrador, ao descobrir que Claude é irmão de seu pai.
A antipatia do feto cresce a cada aparição do tio. Além dos planos monstruosos para aniquilar o próprio irmão, e assim ficar com sua mulher e a herança, o sujeito é, na visão do narrador, um boçal, incapaz de comentários que não sejam superficiais:
Quem é Claude, esse impostor que se infiltrou como um verme em minha família e em meus sonhos? Ouvi isto uma vez e tomei nota: um ignorantão. Todas as minhas perspectivas futuras estão afetadas. A existência dele se choca com o direito que tenho a uma vida feliz sob o cuidado dos meus dois pais. A menos que eu invente algum plano.
Junto com os comentários ácidos sobre as pessoas e o mundo que o espera, nesses últimos capítulos, percebemos a personalidade do feto se formando. Ainda na barriga da mãe ele é exposto a uma situação extrema que exige posicionamento. Diferente das notícias que ele ouve no rádio, reais, mas ainda longínquas, a trama que se desenrola entre os sussurros de Trudy e Claude irá afetá-lo diretamente.
Nesse jogo de forças entre o pai, a mãe e o tio, o narrador escolhe a figura de Claude para o papel de vilão frio e calculista. Embora a mãe também esteja envolvida no plano sujo, o feto sente a obrigação de amar e proteger a ela e ao pai, a despeito das fraquezas de caráter de ambos:
Não é o amor dela que está faltando. É o meu. É meu ressentimento que está nos separando. Recuso-me a dizer que a odeio. Mas abandonar um poeta, qualquer poeta, por Claude!
É duro, e também é duro que o poeta seja tão frouxo.
Essa inquietação do feto em relação à mãe fica clara quando ele explica a ligação incontornável que há entre os dois. Graças à consciência que adquiriu, ele já é capaz de opinar sobre os acontecimentos que o rodeiam e se opor, ao menos teoricamente, às atitudes de Trudy. No entanto, enquanto seus pensamentos o distanciam dos desvios de caráter da mãe, sua dependência física não o deixa ir muito longe:
Sou um órgão de seu corpo, em nada separado de seus pensamentos. Sou parte do que ela está prestes a fazer.
O feto começa a se questionar, portanto, até que ponto é testemunha ou cúmplice do plano arquitetado por sua mãe e seu tio. Seu ponto de vista subjetivo também é um aspecto bem trabalhado por McEwan em Enclausurado. A partir da consciência de que sua visão de mundo parte de um filtro significativo – as paredes do útero de sua mãe -, o feto não sabe ao certo distinguir o imaginado do real.
Em certo momento, não temos mais nem a certeza absoluta de que tipo de crime estamos prestes a testemunhar, já que todos os momentos em que Trudy e Claude conversam sobre o que fazer com o pai do narrador são barulhentos, ruidosos, o que impede que o feto ouça a conversa com clareza.
É interessante notar, também, como Ian McEwan reposiciona a história, uma releitura da famosa peça de William Shakespeare. Enclausurado, sabemos desde a epígrafe, parte do mesmo ponto de Hamlet, história na qual o príncipe da Dinamarca busca se vingar do assassinato de seu pai, o rei, por seu tio, Cláudio, que toma o trono e se casa com sua mãe.
Se em Shakespeare o assassinato já é um fato, McEwan dá um passo atrás e coloca tudo no plano das possibilidades. O vingador ainda não nasceu, seu pai ainda está vivo. Assim, não nos faz mal perguntar se é possível que o nosso peculiar narrador consiga reverter as decisões de Trudy.
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