Ensaios não estão entre as categorias mais populares da literatura. Há quem diga que são muito teóricos e difíceis de entender. Para mim, é justamente o contrário. Ler um ensaio é a oportunidade de decifrar um autor e chegar mais perto de compreender toda sua obra. Nesse gênero, os escritores abdicam das máscaras atenuantes da ficção e expõem suas opiniões e experiências da forma mais sincera e direta, nos fazendo refletir sobre nossas próprias posições. Confira, abaixo, uma seleção com meus cinco livros de ensaios favoritos.
1. A Vida Descalço, de Alan Pauls: a escrita do autor argentino não poderia encontrar melhor morada que no gênero de ensaios. Mesmo em seus romances, Pauls é capaz de conduzir longas digressões até esgotar um assunto, sem perder a linha de raciocínio nem a atenção do leitor.
Em A Vida Descalço, o tema é a praia. Misturando memórias de infância às da vida adulta, inclusive sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, o escritor desenvolve um ensaio sobre a praia como um ambiente imaginário, em que desejo, ilusão e novos códigos sociais são estabelecidos:
Só uma familiaridade muito precoce com os usos e costumes da praia pode, de fato, embaçar o brilho de uma obviedade que ainda hoje deveria nos deslumbrar: a praia é o único espaço público onde a nudez quase completa não é uma exceção nem uma infração provocadora, e sim um princípio de existência, uma forma de vida, a lei – tácita e unânime, mas não coercitiva – que rege a convivência humana.
O que torna o livro ainda mais interessante é que Pauls busca na literatura, no cinema e na publicidade referências que comprovam suas ideias. Compreender, por exemplo, O Estrangeiro, de Albert Camus, à luz da análise do comportamento humano na praia é revelador!
Na bela edição da Cosac Naify, mais um bônus para leitura: as fotos antigas do arquivo pessoal de Pauls separando os capítulos dão a leveza que, geralmente, falta a um livro de ensaios.
2. Como Curar um Fanático, de Amós Oz: coletânea de palestras e artigos do escritor israelense, esse livro é uma boa indicação para entender o mundo conflituoso em que vivemos. Conhecido por seus romances tanto quanto por suas opiniões acerca da disputa Israel-Palestina, Oz cresceu em Jerusalém como uma testemunha extremamente atenta às consequências nefastas do fanatismo.
Segundo ele, esse mal está presente em diversas esferas, desde as relações familiares cotidianas até o contexto político global, uma vez que sua essência reside em um sentimento mais comum do que se pensa: o “desejo de forçar outras pessoas a mudar”. O fanático tem uma “inclinação comum para fazer o próximo melhorar”, ou seja, acredita cegamente estar em uma missão humanitária para salvar o outro das trevas.
Os ensaios de Oz abordam predominantemente o conflito no Oriente Médio, mas não deixam de lado outras partes do mundo. Defensor da criação de dois Estados, Oz é um crítico contundente às vozes que tentam rotular o conflito Israel-Palestina como uma questão puramente religiosa.
A diferença entre idealismo e fanatismo é a distância entre a dedicação e a obsessão. Para o fanático, mas não para o idealista, “o fim justifica todos os meios”. (…)
Não acredito num choque entre o Oriente e o Ocidente ou entre o islão e o Ocidente secular. Creio que a síndrome do século XXI é o choque entre fanáticos de todas as cores e o resto de nós.
A lucidez de seu discurso é uma oásis no deserto de razão que vemos hoje. Ótima leitura para refletir sobre o o que nos rodeia, mas especialmente sobre nós mesmos.
3. Como Ficar Sozinho, de Jonathan Franzen: Franzen é um dos grandes ficcionistas norte-americanos da contemporaneidade, por isso perdoem-me se o que vou dizer soa como uma heresia. Para mim, o Franzen ensaísta é muito mais atraente que o Franzen romancista.
Como Ficar Sozinho, uma coletânea de ensaios sobre temas como solidão, privacidade, velhice, suicídio e literatura, é uma das leituras que mais me marcaram, pela pertinência atemporal das reflexões que propõe.
Assim como em seus romances, o toque autobiográfico é um dos destaques dos ensaios de Franzen. Um dos textos mais interessantes do livro é o que ele escreve sobre a perda do seu amigo, o também escritor David Foster Wallace, que sucumbiu à depressão e cometeu suicídio em 2008.
Intitulado Mais Distante, o ensaio mescla as memórias do seu convívio com Wallace aos relatos da viagem que Franzen fez a um lugar ermo na região do Pacífico Sul para jogar as cinzas do amigo, em uma tentativa dolorosa de reconstruir os caminhos que podem levar um ente querido à radicalidade do suicídio.
Ele estava doente, sim, e em certo sentido a história da nossa amizade era que eu simplesmente amava pessoas mentalmente perturbadas. Aí a pessoa deprimida se matou, de uma maneira calculada para infligir o máximo de sofrimento em quem ele mais gostava, e nós que o amávamos ficamos com raiva e nos sentimos traídos. Traídos não apenas pelo fracasso do nosso investimento afetivo, mas pela maneira que o seu suicídio nos tirou de nós, transformando-o em lenda pública.
4. Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace: embora esse livro já tenha aparecido em outra lista por aqui e em vários textos do blog, é impossível não colocá-lo também neste post. Essa coletânea de título curioso não é apenas um dos melhores livros de ensaios que já li. É um dos melhores livros que encontrei em toda minha jornada literária.
Wallace leva a escrita a um outro patamar. Seu texto é provocador, por vezes perturbador, e exigente. Vislumbrar o mundo que ele enxerga não é tarefa fácil, mas é uma experiência literária única.
Sua capacidade de investigar cada detalhe do comportamento humano, mesmo os mais triviais, é notória. Em um dos ensaios que compõem a coletânea, intitulado Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer , Wallace utiliza sua experiência em um cruzeiro de luxo pelo Caribe para revelar percepções inquietantes sobre a natureza humana:
O negócio é o seguinte. Férias são uma trégua de coisas desagradáveis, e como a consciência da morte e da decomposição é desagradável, pode parecer estranho que os americanos sonhem em passar as férias enfiados num imenso mecanismo primordial de morte e decomposição. Mas num Cruzeiro de Luxo 7NC somos envolvidos com destreza na construção de fantasias variadas de triunfo sobre essa morte e essa decomposição. Uma das maneiras de “triunfar” é mediante os rigores do autoaprimoramento; e a manutenção anfetamínica do Nadir pela tripulação é um análogo nada sutil do adornamento pessoal: dietas, exercícios, suplementos de vitaminas, cirurgias cosméticas, seminários sobre gestão de tempo da Franklin Quest etc.
Se você gosta de ensaios ou boa literatura em geral, precisa desse livro na sua estante!
5. Seis Propostas Para o Próximo Milênio, de Italo Calvino: esses ensaios foram meu primeiro encontro com Calvino. Eu tinha 18 anos e o livro estava na lista de leituras obrigatórias para uma disciplina da faculdade. O contexto não era o mais favorável para que eu caísse de amores pelo escritor italiano, mas o improvável aconteceu. Seis Propostas Para o Próximo Milênio inaugurou minha bela coleção de obras de Italo Calvino.
O livro reúne as conferências que o escritor preparou, na década de 80, para a Universidade de Harvard acerca das seis qualidades que, segundo ele, apenas a literatura pode resgatar: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência.
O tom acadêmico e a infinidade de referências teóricas e literárias legitimam o discurso de Calvino e o posicionam como um grande estudioso da área. Sua dedicação e sua paixão pela literatura transparecem em cada um dos ensaios:
O sinal talvez de que o milênio esteja para findar-se é a frequência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica dita pós-industrial. Não me sinto tentado a aventurar-me nesse tipo de previsões. Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar.
E você, gosta de ensaios? Deixe suas indicações aqui nos comentários.
Mariane Domingos
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15 de novembro de 2016 at 18:04
Mariane, adorei o texto e são ótimas dicas de livros. Para quem quiser começar a conhecer o gênero tem também a Revista Serrote, do Instituto Moreira Salles. Já li ótimos ensaios ali e os temas são bem variados.
Como acho que falta uma mulher nessa lista, sugiro “Um teto todo seu”, da eterna maravilhosa Virginia Woolf. É um ensaio baseado numa série de palestras proferidas por ela e trata das condições da mulher e os empecilhos para a livre expressão na sociedade e, principalmente, no ambiente acadêmico literário. É apenas um livro necessário.
Segue um dos trechos que mais me marcou:
“Tranque as bibliotecas, se quiser; mas não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do meu pensamento.”
18 de novembro de 2016 at 18:09
Ana, muito bem observado: faltou uma mulher! Fui correndo procurar o livro da Woolf na Amazon e a edição da Cosac está esgotada. 🙁 Conto com você pra me emprestar. haha
E sobre a Serrote, uma ótima dica. Revistas são sempre boas fontes de ensaios. Na maioria das vezes, os livros são coletâneas. A New Yorker e a piauí são boas opções também. Isso me deu uma ideia de outra lista – revistas! <3
7 de abril de 2020 at 13:09
maravilha essas dicas! Que pena que seu site está “moribundo”, mas vou ler tudo isso que você indicou, obrigada!
10 de maio de 2020 at 23:30
Que bom que este post lhe foi útil, Margarete! Obrigada pelo seu comentário. Sim, o blog anda abandonado… Por conta de questões pessoais, tivemos que nos ausentar por um longo período, mas estamos planejando um retorno em breve. Fique de olho! ; )