… se eu escutava somente o silêncio, era porque ainda não estava acostumado ao silêncio; talvez porque minha cabeça vinha cheia de ruídos e vozes.
Assim, cheio de ruídos e vozes, é o romance Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo. Essa frase do personagem Juan Preciado sintetiza o ponto forte desta obra que, nas palavras de Gabriel García Márquez, é “a mais bela novela já escrita em língua castelhana”.
Rulfo costura múltiplas narrativas para construir a história do homem estampado no título do livro. A cada capítulo, um novo personagem, uma nova voz e um novo tempo. Aos leitores, uma dica: é preciso persistir e não se deixar vencer pela confusão inicial causada pela intensa troca de narradores, pois isso é justamente o que distingue a escrita do autor mexicano. Quando todos os pontos começam a se ligar e fazer sentido, o esforço para superar as primeiras páginas é recompensado.
A história começa com a busca de Juan Preciado pelo pai que não conheceu: Pedro Páramo. Ele decide ir até Comala depois que a mãe, em seu leito de morte, desabafa anos de ressentimento, incentivando-o a procurar o pai não para pedir nada, mas sim para exigir o que lhe era devido por direito: “cobre caro pelo esquecimento em que ele nos colocou, meu filho”.
Tão logo chega aos arredores de Comala, pede informações a um arrieiro e descobre que este também era filho de don Pedro, como era chamado Pedro Páramo. A conversa não é muito esclarecedora, pois Abundio, como soube que se chamava, também havia sido esquecido pelo pai, a quem definia como “um rancor vivo”.
Fora a surpresa de descobrir, ao acaso, um meio-irmão que não tem boas referências de don Pedro, Juan Preciado é impactado pelo calor da região. Essa é uma característica explorada por Rulfo ao longo de todo o romance:
– Faz calor aqui – disse.
– Sim, e isso não é nada – me respondeu o outro –. Calma. Já sentirá mais forte quando cheguemos a Comala. Aquilo está sobre as brasas da terra, exatamente na boca do Inferno. Até dizer que muitos dos que ali morrem, ao chegar ao Inferno regressam por seus cobertores.
A alusão ao Inferno não é um exagero despropositado. À medida que a história avança, Comala revela-se uma cidade cheia de mistérios. As vozes que conduzem Juan Preciado em sua busca não são vozes comuns. Todos os personagens que assumem alternadamente a narrativa para revelar a história de Pedro Páramo são, na realidade, almas que vagam pelo povoado por não terem conseguido a absolvição de seus pecados antes da morte. Comala é uma espécie de purgatório e não são todos os seus habitantes que têm consciência dessa condição.
Mais do que uma cidade fantasma, Comala é um reflexo da história do pai de Juan Preciado. As vozes do além, e também os trechos que são lembranças do próprio don Pedro, trazem à tona um senhor de terras inescrupuloso que, ainda na infância pobre, dava sinais de um destino obscuro. Neste trecho, em que a avó o repreende pela postura rebelde no trabalho, o menino já mostra sua personalidade forte:
– Não está ali para ganhar dinheiro, mas sim para aprender; quando já souber algo, então poderá ser exigente. Por agora, é só um aprendiz; quem sabe amanhã chegue a ser chefe. Mas para isso é preciso paciência e, mais que tudo, humildade. Se te colocam para passear com a criança, faça, pelo amor de Deus. É necessário que você se resigne.
– Que se resignem os outros, avó, eu não estou para resignações.
– Você e suas esquisitices! Sinto que você vai dar errado, Pedro Páramo.
Passando por cima de todos, inclusive da mãe de Juan Preciado, com quem se casou apenas por interesse, Pedro Páramo conquista terras e poder. Todos lhe deviam obediência, favores e, principalmente, pecados. O povoado tornou-se uma extensão de sua trajetória. Quando don Pedro estava no auge, assim estava Comala. Quando ele começou a definhar e, de certa forma, pagar por suas maldades, também a cidade entrou no acerto de contas e conheceu sua decadência. Nas palavras do padre Rentería:
O assunto começou – pensou – quando Pedro Páramo, de coisa baixa que era, se alçou a maior. Foi crescendo como uma erva daninha.
Nesse enredo, há espaço ainda para História e política. Passa por Comala um movimento revolucionário, em uma referência simbólica à Revolução Mexicana, que fez parte da história de Rulfo, descendente de uma família de proprietários de terra. Quando o levante chega a Comala, don Pedro destaca um de seus homens para acompanhar os revolucionários e fingir seu apoio. Diante da instabilidade do cenário, que a todo momento tinha um lado vencedor no controle, a orientação do fazendeiro é clara:
– E por que não se junta a eles? Já te disse que se deve estar ao lado de quem está ganhando.
A partir da combinação de dois elementos essenciais ao sucesso da literatura latino-americana – o realismo fantástico e os regionalismos – Rulfo consegue se destacar por sua habilidade em contar uma história juntando pedaços, às vezes muito breves, de relatos e lembranças. Não à toa, o escritor mexicano é exaltado por grandes nomes, como Gabo e Jorge Luis Borges. A obra de Rulfo não é extensa, mas é, sem dúvida, marcante.
ps.: Além de Pedro Páramo, Juan Rulfo publicou a coletânea de contos Chão em Chamas e o romance El Gallo de Oro. Aqui no Brasil, Pedro Páramo já foi publicado pela Bestbolso (Grupo Record) e pela Paz e Terra. Infelizmente, não é um livro tão fácil de ser encontrado, pelas pesquisas que fiz em algumas livrarias. Ele chegou à minha prateleira muito bem recomendado por duas de nossas leitoras aqui no blog (Wal e Carol, obrigada pela dica!) e graças ao olhar apurado da Tatá, que o encontrou durante uma viagem para Bogotá (¡gracías, amiga!). Espero que minha resenha ajude a espalhar um pouco mais de Juan Rulfo por aí!
Mariane Domingos
Últimos posts por Mariane Domingos (exibir todos)
- [Resenha / Review] A Vida Pela Frente / The Life Before Us - 14 de março de 2021
- [Resenha / Review] The Vanishing Half - 15 de fevereiro de 2021
- [Resenha / Review] Garota, Mulher, Outras / Girl, Woman, Other - 4 de janeiro de 2021
29 de setembro de 2016 at 03:53
Adorei a resenha. Fiquei com vontade de ler e creio que para minha formação seja essencial. Pena que muitos livros importantes não sejam mais editados no Brasil.
30 de setembro de 2016 at 17:54
Ana, acho que você vai gostar! A leitura é bem rápida. Eu levei uma semana, lendo devagar, porque meu espanhol não é um espetáculo. haha Você vai tirar de letra! E uma pena mesmo não termos uma edição das obras de Rulfo à altura da importância desse escritor para literatura latino-americana.
17 de março de 2019 at 16:06
Olá, Mariane.
Acabei de ler Pedro Páramo e a leitura que fiz logo em seguida foi a da resenha no seu blog. O texto está excelente e até me ajudou a confirmar algumas impressões que estiveram vagas durante a leitura.
Tenho uma pergunta: você menciona o regionalismo e o “realismo fantástico”. Eu conheço as expressões “realismo mágico” e “real maravilhoso”. Você propõe “realismo fantástico” como uma nova vertente, presente em Rulfo, ou é apenas uma variação das expressões mais usadas?
Abraço
6 de novembro de 2019 at 16:16
Olá, Débora! Obrigada pelo comentário. Fico feliz em saber que a resenha enriqueceu sua leitura. Quanto à expressão “realismo fantástico”, ela é apenas um sinônimo do termo “realismo mágico”. Um abraço!
26 de março de 2020 at 15:26
Adorei a resenha!
10 de maio de 2020 at 23:31
Fico feliz que tenha gostado, Nathalia! Obrigada pelo seu comentário.
3 de abril de 2020 at 16:39
Gostei da resenha deste livro. Obrigada. Ajudou-me a juntar retalhos, que não conseguia nem lendo mais de uma vez. Parece q é um livro infinito né? Quanto mais se lê, mais descobre-se e entende-se.
10 de maio de 2020 at 23:35
Eu quem agradeço sua visita ao blog e sua participação nos comentários, Fabiana. Concordo plenamente com você: parece um livro infinito! E essas leituras são as melhores, não é mesmo? Podemos sempre voltar a elas com a certeza de que vamos nos surpreender uma vez mais. Um abraço!
17 de junho de 2020 at 14:03
Parabéns pela resenha! Sensível e detalhada!
19 de junho de 2020 at 21:27
Terminei meu curso de Letras Neolatinas na USP em 1960, nos bons tempos da Maria Antônia. Já tinha ouvido falar no Pedro Páramo, mas nunca tive a curiosidade de lê-lo. Li-o agora por influência de minha filha que está fazendo um curso de romance para “aguentar” a quarentena. Leio com muita rapidez e terminei a leitura em dois dias. Incrível como você captou tudo sobre o livro. Parabéns! Vou ficar assídua. Ana