[A Besta Humana] Semana #8

E chegamos ao fim de mais uma leitura do nosso Clube do Livro! O clássico francês de Émile Zola, A Besta Humana, tem ritmo de thriller policial e nos manteve alertas até a última página! Gostou da leitura? Deixe suas impressões nos comentários e também nos conte qual livro gostaria de ver nessa seção!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Mais uma vez os personagens principais de A Besta Humana se preparam para um julgamento, dessa vez do assassinato de Séverine por Jacques Lantier.

As suspeitas, no entanto, não recaem sobre o rapaz. Como ele e Séverine haviam montado um plano quase perfeito para matar Roubaud, Jacques tinha um álibi consistente e logo foi desconsiderado como possível algoz de sua amante.

A situação para o quebrador de pedras Cabuche, porém, é bem mais adversa. Encontrado por Misard e Roubaud com Séverine nos braços, todo ensanguentado, e com a arma do crime ainda a seu alcance, logo foi tido como principal suspeito do crime.

Massacrado por interrogatórios, enredado por perguntas sabiamente formuladas e sem se precaver das armadilhas preparadas, Cabuche se obstinava em sua primeira versão.

Cabuche, como comentou nossa leitora Gabriela, é o personagem mais sensível de toda a trama inescrupulosa que envolve a sociedade de Le Havre. Ainda assim, por ser talvez mais humano e menos máquina, Cabuche é refém de suas atitudes impensadas, como a que o compromete na cena do crime, ao tomar Séverine nos braços e a colocar na cama. Cabuche não é nem mesmo capaz de explicar que de fato era apaixonado por Séverine e que colecionava seus apetrechos, como lenços, grampos e outros pequenos acessórios. Essa simples confissão teria explicado porque o relógio de Grandmorin, que estava com Jacques na cama em que ele se recuperou do acidente com a Lison, foi parar em sua cabana.

Lembrava-se perfeitamente. Aquele relógio, ele tivera a surpresa de encontrar amarrado num lenço pego debaixo de um travesseiro e levado para seu casebre como troféu de caça. E lá ficou escondido, enquanto ele quebrava a cabeça, procurando como devolver. Mas para que contar tudo isso? Teria que igualmente confessar outros roubos, ninharias e panos com cheiro tão bom que o envergonhavam. De qualquer forma, não acreditavam no que dizia.

A ligação com a morte de Grandmorin só piora sua situação, já que o assassinato passa a ser atribuído a uma ordem de Roubaud, que se torna um dos réus nesse processo. Para o juiz de instrução Denizet, sempre cego em sua lógica certeira, a ligação entre os dois assassinatos é clara como água, sem a menor possibilidade de hesitação.

A história inteira, com isso, se reconstituiu em sua mente com tal clareza de raciocínio, tal evidência que imbuiu a acusação de indestrutível consistência. A própria verdade pareceria menos verdadeira, fantasiosa e com pecha de ilogismo.

Mesmo quando Roubaud admite ter matado o presidente Grandmorin, o detetive ainda se apega à sua versão construída dos fatos e desconsidera a do marido de Séverine. Acreditava piamente ter chegado aos mistérios mais obscuros dos crimes, sobretudo por suas habilidades no entendimento da alma humana:

O juiz refinava a psicologia do caso com verdadeira paixão profissional. Nunca, garantia ele, havia descido tão profundamente na natureza humana. E tratava-se de adivinhação, mais do que de observação, pois o dr. Denizet se gabava de pertencer à escola dos juízes videntes e hipnotizadores, que com uma só olhada desarticulam um acusado.

A ironia de Zola é clara: aquele que as leis designam para julgar é o mais cego e o primeiro a subestimar a complexidade do comportamento humano. Todos os personagens do livro carregam algum tipo de vício grave e sentimentos pouco nobres que dificilmente seriam percebidos só por “observação”, menos ainda por “adivinhação”. Jacques não é a única besta da história. Misard, por exemplo, é tomado pela febre da ganância. Flore é invadida pela inveja. Roubaud se afunda no jogo e tem ataques de ciúme. Séverine é egoísta e manipuladora. Pecqueux passa a vida sendo desleal com as mulheres. Em dado momento, todos esses personagens explodem e se tornam uma besta, revelando seus desvios de caráter. A natureza humana, nos mostra Zola, é bem mais complexa do que imagina a filosofia do dr. Denizet.

Até os personagens que não chegam, de fato, a consumar um crime contribuem para a engrenagem da injustiça. No caso Roubaud, o sr. Camy-Lamotte é um bom exemplo disso. Ele poderia ter resolvido a charada e derrubado a lógica arquitetada pelo juiz Denizet. Bastava mostrar o bilhete que tinha em suas mãos, em que a falecida solicitava a Grandmorin que ele tomasse o trem para Le Havre. Esse pequeno pedaço de papel confirmaria a história de Roubaud e poderia alterar o curso das investigações, mas o secretário prefere queimar a prova, mais uma vez sabendo que a devida justiça não está sendo feita. Ele reflete:

A justiça, que grande ilusão! Não é enganar a si mesmo querer ser justo, estando o terreno da verdade sempre encoberto por tanto mato? Era melhor se manter prudente, escorar com o ombro aquela sociedade decadente, prestes a ruir.

Um dos questionamentos mais interessantes que Zola faz neste clássico é sobre o valor da Justiça e das leis. É evidente que o sistema judiciário francês era nada bem visto pelo autor. É nessa instituição, que pretende a igualdade entre todos, que se refletem os principais vícios de uma sociedade profundamente desigual, capturada por interesses pessoais e políticos e vítima da cegueira humana.

No banco de testemunhas, Jacques se mostra mais uma vez vazio de remorsos ou arrependimentos e é capaz até de verter algumas lágrimas em memória da amante. Zola compara a postura do maquinista nesse momento ao seu comportamento na condução da Lison. A mesma frieza que ele dedicava às máquinas estava presente em suas relações humanas:

Bem tranquilo, Jacques mantinha as duas mãos apoiadas à barra do banco reservado às testemunhas na mesma posição a que se acostumara conduzindo locomotivas. Comparecer ao julgamento poderia ser profundamente perturbador, mas ele demonstrou total lucidez, como se nada naquele caso lhe concernisse.

Sua performance no julgamento foi o último prego no caixão dos dois acusados. Sem outras provas e seguindo a lógica obstinada de dr. Denizet, Roubaud e Cabuche foram condenados a trabalhos forçados à perpetuidade.

À solta, Jacques volta a sua vida anterior, agora em outra locomotiva, a 608, que já não tem mais nome, apenas um número. Sua relação com a máquina muda dramaticamente: o trem já não responde mais aos seus comandos como fazia a Lison.

Não era uma máquina fácil e sim um tanto rebelde, extravagante, como aquelas éguas novas que precisam ser domadas pelo cansaço até aceitarem os arreios. Ele frequentemente praguejava irritado, lamentando a Lison.

Ao mesmo tempo, o foguista Pecqueux, seu parceiro de viagem, passa a se afundar em ciúmes de Jacques com Philoméne, a amante do foguista que se aproximara de Séverine e acabara interessada pelo maquinista. A relação entre os dois e a locomotiva, tão harmônica no início do livro, se altera profundamente. O antigo “ménage à trois”, como escreve o autor, não se sustentava mais.

Até que a relação entre os dois, certa vez em que Pecqueux bebeu demais, se agrava de um modo irreversível. Com o trem em movimento, os dois se engalfinham e travam uma luta desesperada na cabine. Zola, como sempre, não nos poupa detalhes e trata a morte como algo banal, corriqueiro.

Num derradeiro esforço, Pecqueux conseguiu empurrar Jacques e este, sentindo que caía no vazio, apavorado se agarrou ao seu pescoço, de maneira tão desesperada que o levou junto. Dois gritos terríveis se confundiram e se perderam. Os dois homens foram precipitados juntos e arrastados sob as rodas, esquartejados pela velocidade, estraçalhados num abraço, um aterrorizante abraço daqueles que por tanto tempo tinham vivido como irmãos. Foram encontrados sem cabeça, sem pés, apenas dois troncos ensanguentados que se estreitavam ainda, como se quisessem sufocar um ao outro.

Livre, sem maquinista e sem foguista, a locomotiva 608 ganha vida própria e acelera em direção à destruição. Mais uma besta se revela na história, fechando um ciclo de matança, que ao que tudo indica, não foi o primeiro, nem será o último nesse mundo desgovernado. A dominância das máquinas, que subjugaria uma “cantante” espécie humana, a quem Zola chama de “gado humano”, era uma realidade vislumbrada pelo escritor com mais de um século de antecedência. A soberba de se crer no controle é o ponto fraco que derruba o homem.

Que importância tinham as vítimas que a máquina esmagaria no caminho? Não seguia, de um jeito ou de outro, rumo ao futuro, indiferente ao sangue derramado? Sem condutor, em meio às trevas, besta cega e surda solta no campo da morte, ela rodava, rodava, carregada de bucha de canhão, de soldados já tontos de cansaço que, bêbados, continuavam a cantar.

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4 Comentários

  1. A maldade, a ganância, o egoísmo e a ilusão à justiça são peças fundamentais no romance de Zola. Essas características norteiam o caráter dos personagem (“as bestas humanas”), provocam ações eletrizantes ao longo da história, conferem altas emoções do começo ao fim e tornam a leitura cada vez mais atrativa.
    Enfim, adorei a escolha do livro!
    Ah! Já estou na expectativa para o próximo título do clube do livro 🙂

    • José Carlos Zambolli

      19 de fevereiro de 2017 at 14:11

      Olá Mariana,
      Estou lendo o original de “A Fortuna dos Rougons” (“La Fortune des Rougons”), um dos primeiros livros de Émile Zola. O primeiro capítulo da obra é muito poético, com dois personagens jovens (Silvère e Miette) que são inesquecíveis. Há uma cena belíssima em que ambos, muito pobres, se encontram em um cemitério da cidade e, depois, saem para caminhar pela única rua do vilarejo onde os pobres namorados podiam livremente se encontrar. Às vésperas da partida de Silvère para a guerra, em defesa da República (era no tempo da Revolução Francesa), ambos estão encolhidos de frio, protegidos apenas pelo casaco de Miette, e o narrador os descreve como um único ser, em simbiose profunda, duas crianças silenciosas e apreensivas diante do futuro incerto…

      • José Carlos Zambolli

        19 de fevereiro de 2017 at 14:12

        Todos os livros de Zola são maravilhosos. Vale a pena ler e reler!!!

      • Olá, José Carlos! Meu primeiro contato com a obra de Zola foi A Besta Humana, nesse Clube do Livro que organizamos há alguns meses. Fiquei muito bem impressionada! Ótima dica a sua, vou procurar saber mais sobre “La Fortune des Rougon”. A força descritiva de Zola, extremamente comprometida com o detalhe que faz o retrato parecer real, é mesmo marcante. Nessa cena que você descreveu, pude perceber isso. Mesmo os sentimentos encontram sua materialização. E é admirável como, embora atrelada a uma época, sua obra perdura por séculos. Com certeza, vale ler todos os livros da série dos Rougon-Macquart. E ainda é uma ótima oportunidade de treinar o francês! 🙂

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