Quase ninguém presta atenção nelas, mas são uma das minhas partes favoritas de um livro. Posicionadas logo antes do sumário ou de um capítulo, as epígrafes podem ser uma frase, um parágrafo, um poema ou até mesmo um versículo. São utilizadas para introduzir, de maneira lírica, o mote da obra. Gosto de lê-las antes de começar o livro e, novamente ao final, para confirmar o quão acertada foi a escolha do escritor. Muitas vezes, me servem como critério decisivo de compra – um livro com uma epígrafe instigante sempre ganha meu coração! Abaixo, listei cinco das minhas preferidas.
1. Amada, de Toni Morrison
Chamarei meu povo
ao que não era meu povo;
E amada
à que não era amada.ROMANOS 9, 25
Esse versículo bíblico do livro de Romanos, no Novo Testamento, foi a escolha de Morrison para abrir Amada, sua obra-prima. Vencedor do Pulitzer e eleito em 2006 o livro de ficção mais importante dos últimos 25 anos nos Estados Unidos, o romance é centrado em Sethe, uma ex-escrava, que após fugir da fazenda onde havia sido cativa desde o nascimento, se instala, com sua caçula Denver, na casa da sogra. Obrigada a lidar com perdas durante sua vida toda, Sethe irá enfrentar os fantasmas de uma consciência atormentada pela morte da outra filha, há quase 20 anos.
Amada, palavra que dá título ao livro e inspira a epígrafe, é a única inscrição na lápide da filha e também o nome de uma jovem enigmática que chega à cidade. Para quem já leu o romance, esse versículo, que remonta à acolhida dos gentios como povo de Deus, faz todo sentido. A delicadeza e afeição do termo “amada” em nada corresponde à realidade dura de Sethe, de sua família e dos milhões de seres humanos vítimas da história sangrenta da escravidão.
2. Bonsai, de Alejandro Zambra
Passavam-se os anos, e a única pessoa que não mudava era a jovem do seu livro.
Yasunari Kawabata
Essa citação do escritor japonês vencedor do Nobel de Literatura é uma das epígrafes do livro do chileno Alejandro Zambra. A escolha não poderia ter sido mais acertada, já que, neste romance, todos os fatos guardam uma relação estreita com a literatura. A história de amor de Emilia e Julio é ritmada pelas histórias que o casal lê nas obras de Tchekhov, Perec, Flaubert e tantos outros. Segundo o narrador, eles eram “jovens tristes que leem romances juntos, que acordam com os livros perdidos entre as cobertas”. Os personagens dos clássicos não mudam, estão lá há séculos, mas o amor de Emilia e Julio não terá a mesma resistência. Em certo momento, o narrador nos avisa: “esta é, então, uma história leve que se torna pesada”.
3. Liberdade, de Jonathan Franzen
Ide juntos,
Todos grandes vencedores. Eu, velho cágado,
Baterei asas até algum galho seco, e lá
Compadre, para nunca mais ser encontrado,
Lamentar-me até me perder.O conto do inverno
Franzen recorreu a Shakespeare para introduzir seu aclamado romance Liberdade. Na peça O conto do inverno, o célebre inglês desenvolve uma trama de traições, enganos e arrependimentos, cujos personagens centrais são o rei Leontes e a rainha Hermione. Ela é exilada do reino sob falsas acusações de trair o marido com seu amigo Políxenes, rei da Boêmia. Depois de fingir sua própria morte e passar 15 anos desaparecida, Hermione reaparece e Leontes tem a chance da redenção. Por aí, já conseguimos ver algumas semelhanças com o enredo de Franzen, que também tem um triângulo amoroso com os amigos Walter Berglund, sua esposa Patty Berglund e o roqueiro Richard Katz. Eles se conhecem no fim dos anos 70 na Universidade de Minnesota e, embora Patty tenha se casado com Walter, não é segredo que ela nutre uma paixão por Richard.
O trecho escolhido para a epígrafe também vem bem a calhar, porque fala sobre fracasso e arrependimento. O romance de Franzen retrata a decadência de uma família liberal de classe média, que voa em seus ideais de liberdade nos anos 70 e acaba esbarrando em uma vida monótona em que a liberdade é tão presente quanto inacessível. O fracasso dos sonhos e das crenças diante da vida real, nos mostra Franzen, é o mais cruel de todos.
4. O Herói Discreto, de Mario Vargas Llosa
Nosso belo dever é imaginar que há um labirinto e um fio.
Jorge Luis Borges, “O Fio da Fábula”
Neste romance do escritor peruano realmente nos sentimos em um labirinto. Alternando duas histórias que, a princípio, parecem paralelas, Llosa constrói uma narrativa que entrelaça crimes, ambições, intrigas, paixões e surpresas. De um lado, temos Felícito Yanaqué, dono de uma empresa de transportes em Piura, que começa a receber ameaças anônimas e não descansa enquanto não encontra seu agressor. Já em Lima, conhecemos Ismael Carrera, um viúvo septuagenário dono de uma companhia de seguros, que decide se casar com uma mulher bem mais jovem para o desespero de seus filhos ineptos e gananciosos. Llosa leva ao pé da letra o “conselho” de Borges na citação que escolheu para epígrafe – imagina que há um labirinto e um fio, e nos conduz por uma narrativa deliciosa!
5. 2666, de Roberto Bolaño
Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.
Charles Baudelaire
Começo informando que Bolaño é o mestre das epígrafes instigantes. Foi difícil eleger só um livro dele para entrar nesta lista. Acabei selecionando sua obra-prima 2666 que é introduzida com essa frase curta, mas chocante, do poeta francês Charles Baudelaire. Já adianto que não cheguei a uma interpretação satisfatória da escolha dessa epígrafe, mas ela me marcou muito, porque é tão forte quanto esse romance magistral do escritor chileno.
Dividido em cinco partes, 2666 narra as jornadas de quatro intelectuais que viajam ao México em busca de um autor recluso. Lá, eles se veem envolvidos pela atmosfera violenta de Santa Teresa, cidade fictícia que corresponde a Ciudad Juárez. Apesar de o livro trazer reflexões sobre a literatura e seu papel na sociedade, o motor da narrativa está nos crimes brutais cometidos contra mulheres nessa região fronteiriça e desértica no México.
Nesse contexto, é fácil entender o “horror” e o “deserto” da frase de Baudelaire. O sentido de “oásis” e “tédio” é mais nebuloso. Por que um “oásis de horror”? Uma interpretação possível é encarar a violência como um sintoma capaz de chacoalhar a indiferença – ou o “deserto de tédio” – que domina uma sociedade alienada à desigualdade que a rodeia. São só palpites dentro de uma infinidade de inquietações que esse ótimo romance nos suscita desde a capa até última linha, sem esquecer a epígrafe, é claro!
E você, também gosta de colecionar boas epígrafes? Conte para nós aqui nos comentários!
Mariane Domingos
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