Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 247 (se você tem a edição da foto).
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Depois das dúvidas sobre quem levaria a culpa do assassinato de Grandmorin, o casal Roubaud resolve agir para garantir que o crime não seja descoberto. Sevérine vai a Paris pedir a ajuda do secretário-geral, o dr. Camy-Lammote. A princípio, o objetivo era apenas conservar o emprego do marido, mas depois de receber algumas indiretas do secretário, ela percebe que ele tinha conhecimento de uma prova definitiva – a carta que Roubaud havia obrigado Séverine a escrever, convocando Grandmorin para um encontro.
Mesmo depois de ter certeza de que o bilhete que chegara às suas mãos fora escrito por Séverine, Camy-Lammote hesita em entregar as evidências ao juiz, pois acredita que ter o casal Roubaud como culpado seria pior à imagem do regime do que sustentar as suspeitas sobre Cabuche:
Para que destruir a falsa pista da investigação processual se a verdadeira conduziria a transtornos maiores? Era algo a se levar em consideração.
Mais uma vez, neste capítulo, Zola nos mostra como a justiça que conhecemos na teoria está bem longe daquela que vemos na prática. Enquanto na leitura da semana passada, os critérios sociais orientaram os julgamentos, nestes últimos capítulos, os interesses pessoais e os jogos de poder definiram os rumos da justiça:
No fundo, de nada valia tanto trabalho só para ser justo. Era um simples cuidado em sustentar as aparências do regime a que servia.
Percebemos essa mesma postura no juiz Denizet, outrora tão empenhado em encerrar de maneira digna o caso. Quando o secretário insinua que o posto a que ele tanto almejava em Paris dependia do seu comprometimento em conduzir as investigações de acordo com os interesses do governo, seus planos pessoais logo falam mais alto:
E ele que não se vendia, criado na tradição da magistratura honesta e medíocre, imediatamente cedia à simples esperança, ao vago compromisso que a administração pública assumia de favorecê-lo. A função judiciária não passava mais de uma profissão como outra qualquer e ele arrastava o peso da expectativa salarial, como demandante faminto, sempre disposto a se curvar às ordens do poder.
O pouco caso dos homens de lei pela lei é o que salva o casal Roubaud. Séverine volta a Le Havre com a sensação de missão cumprida. Em sua última conversa com o secretário, ele fala, pelas entrelinhas, que irá guardar o segredo e deixa claro o quanto ela lhe devia por tamanho alívio. Uma dívida que, ao que tudo indica, ele ainda vai cobrar.
Após o turbilhão de acontecimentos dos últimos capítulos, inicia-se um período de calmaria na narrativa de Zola. Os Roubaud voltam à sua rotina, o caso do assassinato perde espaço nos jornais para as eleições que se aproximam e o caso é encerrado sem nenhuma solução, já que Cabuche acaba sendo solto por falta de provas.
Mas monotonia definitivamente não combina com a narrativa de Zola. Não demora muito para um novo elemento incendiar a história – Séverine e Jacques começam um relacionamento proibido. Ainda em Paris, vimos os primeiros indícios de uma aproximação. Quando o perigo da prisão iminente desaparece e Séverine se vê jogada em uma vida tediosa ao lado de um marido que já não suporta, Jacques começa a frequentar a casa a convite de Roubaud e desperta na moça a paixão por viver uma aventura.
Os dois começam a se encontrar escondidos nos fundos do depósito da estação. Séverine, a princípio, não queria se entregar e brecava qualquer avanço mais audaz do maquinista. Ao mesmo tempo, Jacques se via cada dia mais envolvido na relação, especialmente porque Séverine não lhe despertava os mesmos instintos assassinos que outras mulheres. A besta, ele pensa, está controlada porque a pessoa que tem a seu lado foi capaz de matar.
Séverine o havia curado por ser diferente, violenta em sua fraqueza, coberta do sangue de um homem, o que formava nela uma espécie de couraça de horror. Era ela a força dominante, ousando onde ele não ousara.
Em um desses encontros, Jacques se atrasa porque a chuva torrencial o levou a acreditar que Séverine não conseguiria encontrá-lo. Quando ela finalmente o percebe na escuridão, se entrega mais apaixonadamente. Depois de “consumarem” o relacionamento, Jacques percebe que nem pensou em usar o martelo largado ao lado.
Se a relação de Séverine e Jacques avança a passos rápidos, o humor entre o casal Roubaud piora a cada dia. O marido passa cada vez menos horas em casa, o que de modo nenhum desagrada à mulher. As poucas vezes em que se encontram, nas refeições em comum ou na cama, nas semanas em que Roubaud não faz o turno da noite, ficavam cada um no seu canto.
Ele chega a questionar se a morte de Grandmorin era realmente necessária e ainda considera que errou ao ter arrastado a mulher consigo na hora do crime, o que estabeleceu um muro intransponível entre os dois. O segredo os obriga à tolerância mútua, mas os dois já são totalmente indiferentes um ao outro.
Naquele momento, não tinha arrependimento algum. A única diferença, no entanto, se fosse possível tudo refazer, é que não teria envolvido a esposa. (…) Extinta a chama do ciúme e já não se impondo mais a intolerável ardência, invadido pelo torpor, como se o sangue do seu coração se houvesse condensado com todo aquele sangue derramado, a necessidade do crime já não lhe parecia tão evidente. Às vezes inclusive se perguntava se realmente tinha valido a pena matar.
Roubaud, que foi capaz de planejar um assassinato quando soube que sua mulher tinha estado com seu protetor quando era mais nova, agora não demonstra mais nenhum incômodo com a presença constante de Jacques na casa. Chega mesmo a deixá-los sozinhos, indo fumar um cachimbo na janela. Aos poucos, o maquinista e a esposa do subchefe de estação abandonam a discrição e passam a se encontrar na casa dos Roubaud, nas noites em que o marido não está. Séverine até mesmo inventa um problema no joelho para passar as sextas-feiras com Jacques em Paris.
É o dinheiro, claro, que coloca um fim nesse jogo de indiferença mútua. Sob uma tábua do chão em um canto da sala, Roubaud escondeu os 10 mil francos e o relógio que subtraíram de Grandmorin na noite do crime, para que parecesse um caso de roubo comum.
No começo, os dois fingem que esses recursos são inexistentes e juram que nunca irão tocá-los. Roubaud, porém, que antes levava uma vida frugal e se contentava com seu salário anual, é agora um homem consumido pelo peso do crime que cometeu. Ele não demonstra culpa explicitamente, mas a degradação física e moral de seu personagem é clara. Sem vontade de dividir o teto com Séverine, gasta um pedaço cada vez maior do seu dia – e de seus recursos – em um bar no qual se faz apostas.
Certo dia, ele não tem mais dinheiro nem para comprar botas para Séverine, o que gera a primeira briga entre o casal depois do crime. Em outro, ela lhe flagra ajoelhado no chão, em busca das moedas roubadas de Grandmorin. Quando ela o questiona, ele apenas grita para que ela não se intrometa e mostra que sabe do romance entre ela e Jacques. Mesmo que Roubaud não assuma que sente arrependimento, o fato é que o crime desestabilizou sua vida. O assassinato o marcou como uma doença que consome o corpo e a alma. Neste trecho, Zola descreve esse efeito e nos fez lembrar de um dos criminosos mais famosos da literatura mundial – o atormentado Raskólnikov, de Dostoiévski:
… era como se o crime tivesse se infiltrado, causando progressiva desorganização e degradando aquele homem, deteriorando qualquer vínculo entre os dois.
Os próximos estágios desse mal corrosivo e sua reação ao romance entre Jacques e Séverine prometem fortes emoções na leitura que segue. Será que ele realmente ficará indiferente a essa paixão?
Achados & Lidos
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