Para seu romance de estreia, o escritor Bill Clegg escolheu temas bastante comuns na literatura, embora traiçoeiros. Perda, luto e perdão formam uma combinação que tem tudo para render um bom livro, desde que se caminhe a passos firmes na corda bamba que despenca no piegas e na autoajuda. Comecei a leitura de Você Já Teve uma Família? um pouco desconfiada, mas, depois de virar a última página (especialmente esta!), posso dizer que Clegg passou com louvor por esse desafio.
O livro começa com uma perda. June Reid vê seu mundo ruir quando toda a sua família – a filha Lolly, o genro Will, o namorado Luke e o ex-marido Adam – morre em uma explosão causada por um vazamento de gás de cozinha, um dia antes do casamento de sua filha. Ela é a única sobrevivente, porque não estava em casa na hora do incêndio. Neste trecho, Clegg descreve o cenário da tragédia que abateu June:
Lembra que saiu andando da igreja na direção de sua amiga Liz, que estava à espera em seu carro. Lembra como a conversa parou e as pessoas se misturavam e recuavam meio passo para lhe abrir caminho. Ouviu chamarem seu nome – de modo tímido, hesitante –, mas não parou nem se virou para responder. Era uma intocável, sentiu isso profundamente quando chegou ao outro lado do estacionamento. Não por escárnio ou por medo, mas por causa da obscenidade da perda. Era inconsolável, e o caráter total e assombroso daquilo – todos se foram – silenciava até mesmo aqueles mais habituados com as calamidades.
O quebra-cabeça dessa história é construído por múltiplas vozes, uma a cada capítulo, sendo que três delas, as de June, Silas e Lydia, são centrais e aparecem em terceira pessoa. Os relatos dos demais são todos em primeira pessoa.
Silas e Lydia têm uma ligação com Luke. Silas é um adolescente drogado, que trabalhava esporadicamente para a empresa de limpeza de jardins gerenciada pelo namorado de June. Na noite fatídica, por causa das besteiras que a maconha o leva a fazer, Silas viu e viveu muito mais do que gostaria. Conforme a história avança, percebemos que ele é a chave para os mistérios que rondam a explosão.
Já Lydia é a mãe de Luke. Por muitos anos, ela foi a fofoca principal da pequena cidade de Wells. Casada com um homem branco encrenqueiro e que a maltratava, ela engravida após um tempo de casamento. Para a surpresa do marido e de todos da cidade, a criança que nasce é negra. Lydia enfrenta um divórcio e a marginalização em uma comunidade cheia de preconceitos:
Ninguém nunca soube quem era seu pai, mas com certeza sabiam que era negro. Detesto dizer o que isso sugere sobre essa cidade, ou seja, que não tem quase ninguém aqui que pudesse ser o pai dele. (…) Essa era nossa cidade naquele tempo, que ninguém chegava a achar que era um lugar indecente, exceto em situações que deixavam isso claro, como quando Lydia Morey teve seu filho.
Esse trecho, extraído do relato de Edith, moradora de Wells que contribui para narrativa, mostra como Clegg consegue, embora não seja este o foco da obra, trazer à tona uma realidade (bem atual, diga-se de passagem) das tensões sociais e raciais que assolam várias cidades americanas e que se escondem sob um discurso, mais imposto do que vivido, de uma sociedade igualitária e livre.
Wells é o retrato de uma cidade do interior invadida por nova-iorquinos ricos que vêm passar os fins de semana em suas mansões, tomando posse não apenas da força de trabalho, mas também da paz de espírito dos locais. Ainda no relato de Edith, fica claro o desabafo:
… estão sempre cansados demais, sem falar que vivem muito ocupados nos fins de semana representando seu papel de gente alegre do campo para os mimados e exigentes nova-iorquinos, e desse jeito gastam as últimas gotas de civilidade e de paciência com esses forasteiros, e não sobra nada para suas esposas e seus maridos. O povo dos fins de semana que vem da cidade não só fica com as melhores casas, paisagens, comida e, sim, com as melhores flores que nossa cidadezinha tem para oferecer, como também toma o que a gente tem de melhor.
Na trajetória do personagem de Luke, Clegg traduz todos esses conflitos que resumem Wells. Negro e filho bastardo, ele é preso injustamente quando jovem, perde todas as chances de uma vida brilhante longe dali e é rotulado de oportunista por refazer sua vida com uma mulher mais velha e rica. Quando começa a se especular que a explosão não foi acidental, o nome de Luke é o primeiro a despontar como suspeito nas rodas de fofoca de Wells.
É nesse ambiente hostil, assombrado ainda pelo fantasma do arrependimento, que Lydia tem que se refazer da perda do filho. Luke não tinha uma boa relação com a mãe. Depois de quase dez anos de afastamento, ele só voltou a falar com ela por insistência de June, que se empenha em consertar aquela família minada pelas escolhas equivocadas e pela covardia de Lydia.
Essa dedicação de June para ver os assuntos familiares de Luke resolvidos contrasta com a própria relação desastrosa dela com a filha e com o ex-marido. Um divórcio conturbado e uma mudança de país repentina fizeram Lolly tomar partido do pai e ver na mãe a origem de todos os seus problemas. O remorso é o principal aspecto do luto de June:
Palavras que cortam rápido e fundo, infligem um dano que só o tempo é capaz de curar, mas agora não havia tempo nenhum.
June decide partir deixando tudo (ou melhor, nada) para trás. Sai com a roupa do corpo e sem documentos, em estado de choque, para o outro lado do país. Ela vai parar em um quarto de motel em Moclips. O local havia sido visitado por Lolly há alguns anos e é descrito em uma carta que nunca chegou à mãe. June a encontra, alguns dias depois do início de sua fuga, em meio à bagagem para a lua-de-mel da filha, que ela descobre no porta-malas de seu carro. Em um trecho da carta, Lolly diz:
… é muito difícil abrir a cortina e deixar à mostra as histórias e opiniões antigas. Agora, já faz algum tempo que venho fazendo isso e é humilhante ver as coisas mais como elas eram de fato e menos como eu tive a impressão de que fossem ao longo dos anos.
A dor de June é silenciosa. Ela passa o tempo remoendo o que ficou suspenso na nuvem de rancor e superficialidade que pautava sua relação com a filha, ou tentando adivinhar tudo que teria vivido com Luke, se o medo de estragar ainda mais a relação com Lolly não a tivesse paralisado. De certa forma, a viagem sem rumo de June é sua redenção. Silenciosamente, ela busca o perdão para si mesma:
Não é em direção a sua filha que ela está viajando, mas é o mais perto dela que vai conseguir chegar.
Faltam horas de viagem. Ela vai dirigir até a estrada acabar e vai achar aquele quarto. E vai ficar lá.
Em Moclips, outros personagens cruzam o caminho de June e compõem a narrativa a partir da observação daquela hóspede misteriosa e calada. Temos as duas donas do hotel, o casal Rebecca e Kelly, e Cissy, a camareira que é a única que consegue se aproximar de June no período de luto.
Para mim, Cissy é a personagem mais interessante do livro. Há poucos capítulos dedicados a ela. Da metade para o final, cheguei até indagar por que Clegg não explorou mais essa voz. Não demorei muito para descobrir. Ele estava guardando Cissy para o grand finale. Ela amarra todas as pontas da história em uma tentativa, não muito conclusiva, de explicar o que parece indecifrável a June, a Lydia, aos outros personagens e a todas as pessoas que passam por tragédias na vida:
Por mais que a vida seja brutal, sei no fundo dos ossos que o que se espera de nós é ficar aqui e cumprir nosso papel. Ainda que nosso papel seja tossir até morrer de tanto fumar ou ir pelos ares, ainda jovem, numa casa que explodiu, enquanto a mãe assistia tudo. E mesmo que nosso papel seja ser essa mãe. Alguém no futuro talvez precise saber que a gente passou por isso.
Clegg escreveu um livro delicado e muito realista sobre a existência humana. A família que ele menciona no título vai muito além dos laços sanguíneos, são os laços que escolhemos construir, principalmente diante das perdas. Viver é complicado, mas é necessário e fica mais simples quando nos fazemos companhia. Uma hora ou outra, seremos essenciais na vida de alguém e é provável que nem nos demos conta disso, por estarmos preocupados demais tentando decifrar o significado das coisas. Você Já Teve uma Família? não é uma leitura leve, pelo contrário, mas me fez muito bem.
ps.: Como eu disse lá no começo, o piegas e a autoajuda não contaminam o livro do escritor norte-americano. O meu palpite para esse sucesso é o fato de o autor ter experimentado em sua vida todos os elementos que trabalha no livro, sobretudo a perda e o perdão. Além de escritor, Clegg é um agente literário bem-sucedido em Nova York e já havia publicado, antes deste romance de estreia, dois livros de memórias, Retrato de um Viciado Quando Jovem e Noventa Dias, que resgatam suas experiências no período de reabilitação do vício em crack, que o levou ao fundo do poço. Nas descrições da cidade de Wells, no personagem de Silas, nos arrependimentos de June, é possível enxergar um pouco a vida do próprio autor. Nenhum personagem é ele, mas todos o são.
Mariane Domingos
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