[A Besta Humana] Semana #2

Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos até a página 134 (se você tem a edição da foto).

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Parece que estamos assistindo a um filme. O início de A Besta Humana já é cheio de fortes emoções e muitas cenas de ação. Se alguém poderia pensar que o livro escrito em 1890 seria arrastado, engana-se logo de cara.

No primeiro capítulo, já temos uma revelação surpreendente e um plano mirabolante de assassinato. Somos apresentados a Roubaud, subchefe da estação de Le Havre, casado com Séverine, uma jovem de beleza mediana, protegida de Grandmorin, um burguês de carreira bem-sucedida que chegou à presidência do tribunal de Rouen. Embora Roubaud sempre tenha sido um ótimo funcionário, não há dúvidas de que foi o empurrãozinho do velho Grandmorin que o levou à subchefia. Séverine é filha de uma das empregadas do presidente aposentado. Quando sua mãe morreu, Grandmorin tomou a responsabilidade da criação da menina.

Roubaud sentia-se muito sortudo por ter se casado com Séverine e, por vezes, não se achava merecedor dela e de todos os benefícios que o casamento lhe trouxe. Essa crença, no entanto, cai por terra no início no livro, quando ele entende melhor porque foi o escolhido para esse casamento. Tudo começa com uma viagem à Paris, por causa de um problema de trabalho de Roubaud. Séverine decide acompanhá-lo para fazer compras.

A cena se passa no apartamento de Victoire, mais uma que tirou vantagem das relações do poderoso burguês com Séverine. Por ter sido ama de leite da menina, ganhou em sua velhice um emprego na estação de Paris, com um bom salário e acomodações, das quais Roubaud e Séverine sempre dispunham quando estavam na cidade. O quarto é abafado e o clima já é de tensão enquanto Roubaud espera pelo retorno da esposa. A insegurança que ele manifesta sobre o paradeiro da jovem, que se demora um pouco mais para fazer compras, denota que algo está errado, percepção que se agrava quando Séverine, já de volta, recusa a tentativa de aproximação do marido e se cala quando ele a indaga sobre a resposta negativa que ela deu ao convite feito por Grandmorin para uma visita à Doinville.  

Mas é em uma conversa banal que Séverine comete o deslize de revelar que uma das joias que usava diariamente era presente de seu protetor. A revelação dá início ao embate entre marido e mulher. Roubaud percebe que havia mais que um carinho paternal naquela relação e encurrala Séverine com perguntas e agressões físicas:

Uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça, os punhos se cerraram como no tempo em que era trabalhador braçal e empurrava vagões. Voltava a ser o bruto insconsciente da própria força, seria capaz de triturá-la, num cego impulso de raiva.

As cenas de agressão são violentas. Roubaud a arrasta pelo chão, puxando-a pelos cabelos, desfere socos e pontapés; um chumaço de fios misturado a sangue fica grudado em um móvel. Tomado pelo ciúme e pelo sentimento de traição, Roubaud vira um animal, capaz de uma vingança fria. A decisão que ele toma é matar Grandmorin na viagem de trem de volta para Le Havre.  

Enquanto o drama se desenrola, Zola o tempo todo expõe a dicotomia entre a humanidade das máquinas e a bestialidade dos homens. O ser humano, tenta mostrar, é instável, uma única fagulha pode despertar a besta até então guardada. Pelos olhos de Séverine, vemos essa transformação.

Teria desculpado os palavrões e as pancadas, caso tão desatinada reação não a surpreendesse tanto, pois era o que ainda a espantava. Ela que, passiva e dócil, bem moça aquiescera aos desejos de um velho, que mais tarde se adaptara ao casamento simplesmente por querer conciliar as coisas, não conseguia compreender tal explosão de ciúme por erros antigos, dos quais se arrependia. Sem imoralidade, pois sentia-se pura, apesar de tudo, em seu corpo ainda mal desperto, ela observava o marido ir e vir em giros furiosos, como teria observado um lobo, um ser de outra espécie. O que então havia nele? Muitos não tinham tanta raiva! O que a assustava era constatar o animal, que há três anos já pressentia pelos grunhidos surdos e que hoje se desencadeava, furioso, pronto para morder. O que dizer para impedir uma desgraça?

Por outro lado, o comportamento das máquinas é previsível, os trens se encaixam, seguem um fluxo permanente e quase sem distúrbios. As locomotivas, símbolos do progresso, ganham personalidade no texto de Zola, com o uso de verbos que descrevem emoções humanas para discorrer sobre seus movimentos. Um bom exemplo é este trecho, em que Roubaud, antes da briga, olhando pela janela, observa o movimento da estação de trem parisiense, com locomotivas que vão e vem.

De onde estava ele não podia vê-la, estacionada para lá da ponte Europe, apenas a ouvia, pedindo via aberta, com curtos apitos apressados, como alguém que vai se impacientando. Foi dada uma ordem e ela respondeu ter entendido, com um apito breve.

Da decisão tomada por Roubaud, a história salta para Croix-de-Maufras, um “terreno que a via férrea havia cortado”. Lá conheceremos o maquinista Jacques Lantier, esse sim o herói da narrativa. Sua locomotiva, a Lison, havia quebrado e ele aproveitou esse intervalo necessário ao conserto para visitar a tia Phasie, uma senhora doente, mãe de Flore e esposa do sinaleiro Misard, a quem ela acusa de a estar envenenando.

Mais um vez, podemos perceber a maestria de Zola na descrição dos ambientes. Tia Phasie mora em um lugar ermo. A unica agitação por ali acontece nos poucos segundos em que a locomotiva passa. É muito interessante a maneira como o escritor aborda esse paradoxo do espaço solitário, mas ao mesmo tempo lugar de passagem de milhares de passageiros, das mais diferentes origens:

Isso lhe parecia estranho, viver perdida no fundo daquele deserto sem ter uma alma à qual se confiar, enquanto, de dia e de noite, continuamente, desfilavam tantos homens e mulheres no fragor dos trens, sacudindo a casa e se afastando a todo vapor. É claro que a Terra inteira passava por ali, não só franceses, também estrangeiros, pessoas dos lugares mais distantes, já que ninguém mais era capaz de ficar em casa e todos os povos, como agora se dizia, em breve seriam um só.

Esse trecho é uma profecia de Zola. A globalização seria resultado do progresso. É triste pensar que mais de um século depois não evoluímos tanto quanto ele gostaria nessa terra sem fronteiras.

Jacques não acredita na tia. Segundo ele, Misard tem aparência “dócil e inofensiva”. Em Zola, porém, nada é o que parece. Jacques se demora conversando com Phasie e, depois do jantar, sai para caminhar pelo terreno, quando encontra Flore. Os dois conversam e, em uma frase da menina, Jacques enxerga uma abertura para tentar beijá-la. A resistência o torna agressivo, ele arranca a blusa dela. Em vez de desejo sexual, porém, o que a visão dos seios dela desperta nele são pensamentos assassinos.

Ele então, resfolegante, parou e olhou para Flore, em vez de possuí-la. Outro tipo de fúria pareceu tomar conta dele, uma ferocidade que o fazia procurar em volta uma arma, uma pedra, algo, enfim, com que matá-la. Deparou-se com a tesoura, brilhando entre os pedaços da corda, e dando um bote agarrou-a, para enfiá-la naquele colo nu, entre os seios brancos, com suas duas flores rosadas. Mas uma onda de frio o trouxe a si, a arma foi jogada de lado e ele fugiu desvairado, enquanto Flore, de olhos fechados, pensou ter sido rejeitada por haver resistido.

Ainda que esse assassinato não tivesse se concretizado, a noite de Jacques ainda não tinha chegado ao fim. Um pouco mais calmo, distante de Flore, ele assiste ao movimento dos trens, que outra vez assumem características humanas, como o “imenso olho redondo” que é o farol dianteiro. O que acontece em seguida, porém, é inesperado. O que Jacques vê, no cupê acoplado ao trem que segue para Le Havre, parece um delírio: um homem segura outro contra a poltrona e crava uma faca em seu pescoço, enquanto uma massa meio indefinida faz peso sobre os pés do passageiro agonizante. O que poderia ser uma miragem ganha contornos reais quando Jacques retorna à casa de tia Phaisie apenas para descobrir que há um corpo atirado ao lado do trilho. O presidente Grandmorin estava morto.
Não poderíamos esperar por mais adrenalina em apenas dois capítulos, não é mesmo? E você, está gostando da leitura? Deixe suas impressões nos comentários!

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1 Comentário

  1. Que bacana a relação entre a bestialidade do homem e a previsibilidade das máquinas. Realmente faz todo o sentido se relacionamos esses dois capítulos ao título do livro.

    E esse recurso da personificação das máquinas me lembra Germinal, no qual Zola faz o mesmo com a Voraz – mina na qual trabalhava Étienne, irmão de Jacques. Não sei se teremos o mesmo neste livro, mas em Germinal ficava muito forte a ideia do autor em transferir características humanas a seres inanimados e retirar, de certa maneira, alguns traços de humanidade das pessoas.

    Adorei a escolha do livro e ansiosa pelos próximos posts!

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