Com um enredo embalado pelo cotidiano e uma prosa que flerta com a poesia, o romance Galveias, do escritor português José Luís Peixoto, extrai beleza e sabedoria da simplicidade de um povoado esquecido no Alentejo, no interior profundo de Portugal.
O livro começa com um fato extraordinário. A pequena Galveias é acordada por estrondos misteriosos, vindos do espaço, em uma noite de janeiro de 1984. Uma “coisa sem nome” atinge a Terra e deixa na cidadezinha uma cratera que exala o cheiro forte de enxofre.
Ninguém tinha respostas. Do Queimado à Amendoeira, no Alto da Praça, na Deveza, na Fonte, as ruas estavam cheias de gente a expulsar de dentro de si o susto. Sob o trauma dos estrondos e o cheiro a enxofre, falavam sem parar. Perdiam o sentido, mas não perdiam a oportunidade. (…) Quando parecia que estavam compenetrados, não estavam realmente a ouvir, estavam só à espera de vez, à espera de um bocadinho vago para entrarem com o que tinham a dizer.
Em meio a essa afobação, é apresentado o povo galveense cujas histórias se desenrolam nas próximas páginas. São diversos personagens: o padre bêbado, o único médico da cidade, a prostituta padeira, a professora recém-chegada, os irmãos que não se falam há décadas, entre outros. Até os cachorros têm papel importante nos causos que afetam a vida no vilarejo! Cada capítulo dá conta de uma anedota que, em algum momento, desemboca na noite fatídica em que o cheiro de enxofre impregnou Galveias.
A construção narrativa do livro é um dos grandes destaques. Seguindo ao pé da letra a ideia de que “em cidade pequena todos se conhecem”, Peixoto desenha um belo emaranhado. Quando menos esperamos, a história de um personagem se cruza com a de outro. Essas intersecções estão muito bem espalhadas ao longo do livro. Ao estilo de um escritor de romance policial que lança as peças e, no final, revela um quebra-cabeça perfeito, Peixoto tece histórias que parecem banais e vai deixando alguns fios soltos que só serão retomados mais tarde, para surpreender o leitor e dar um sentido totalmente novo à trama.
Cada história tem um tema que se sobressai – um amor, uma tragédia, uma briga ou um problema de família. Os galveenses são gente simples e padecem dos mesmos problemas e dilemas do restante da humanidade. Peixoto consegue capturar esse cotidiano de uma maneira lírica e, por vezes, bem humorada, dando a Galveias e a seu povo um contorno muito bonito que nos faz valorizar a simplicidade. Neste trecho, por exemplo, entendemos por meio dos objetos banais da casa do velho Justino o que é, para ele, envelhecer:
Muitas vezes, parecia-lhe que tinha vivido demasiado. Para que queria aquele tempo? Ainda guardava capacidades, não havia de perdê-las sem estrebuchar, mas todos os dias reparava em alguma coisa que faltava. Era como se morasse numa casa onde, todos os dias, fossem desaparecendo objetos. Durante anos, um objeto a ocupar um lugar, a torná-lo seu e, de repente, apenas a sua ausência. A existir e, logo depois, a não existir. E a ter de viver sem cada uma dessas coisas. E a ter de viver com o vazio das coisas que costumavam estar ali. Primeiro, as peças de enfeitar; a seguir os pratos no louceiro; depois, tudo o que faz falta, até ficar só uma cama onde morrer.
Apesar de trabalhar diversas temáticas nas anedotas, o livro traz uma ideia que ecoa em todas elas – a questão do pertencimento. Em Galveias, a identidade do povo se confunde com a história da terra. É uma coisa só. O tesouro de Galveias são os galveenses, e vice-versa.
Os poucos personagens do livro que têm a oportunidade de conhecer e viver em outras terras levam consigo o pequeno vilarejo. Dona Fátima, uma prostituta que morava há muitos anos no Brasil, tinha como último desejo ser enterrada em sua terra natal. Ela dizia: “a riqueza principal de Galveias são pessoas. Ai, menina, minha terra é rica de tanta gente boa”.
Ou ainda o militar Joaquim Janeiro que formou família na colônia portuguesa de Guiné, mas não deixava a terra natal. Visitava os filhos e a mulher no continente africano apenas uma vez por ano, ocasião em que deixava a todos, inclusive os vizinhos, embasbacados com os presentes que trazia e com as histórias surpreendentes e exageradas que contava do vilarejo. “Galveias, nas suas palavras, era um lugar imenso”.
Tem também a Raquel, neta do velho Justino, que saiu de Galveias para estudar em Lisboa e se ressentia quando seus novos amigos não reconheciam sua terra:
Nesse tempo de perguntas, respondia que era de Galveias e todos continuavam a olhá-la com a mesma expectativa, como se não tivesse dito nada. Então, acrescentava Ponte de Sor e era como se falasse numa língua estrangeira. Por fim, dizia Portalegre e recebia a anuência de um coro chocho, já tinham ouvido falar. Esmorecida, Raquel continuava a comer o caldo-verde da tigela de alumínio, sabendo que tinha ido três vezes na vida a Portalegre.
Confesso que me identifiquei com esse trecho. Sou de Jundiaí, uma cidade do interior próxima à capital paulista, mas diversas vezes me apresentei como moradora de São Paulo, para evitar olhares confusos tentando imaginar de que reino longínquo eu falava.
Nascido e criado em Galveias, Peixoto provavelmente já passou pela mesma situação. O livro é uma bela homenagem à sua terra natal e, sobretudo, ao modo de vida legitimamente rural que aos poucos vem se perdendo não só em Portugal, mas no mundo todo. Como ele bem diz:
Galveias não pode morrer.
Por todas as crianças que deixaram a infância naquelas ruas, por todos os namoros que começaram em bailes no salão da sociedade, por todas as promessas feitas aos velhos que se sentavam à porta nos serões de agosto, por todas as mães que criaram filhos naqueles poiais, por todas as histórias comentadas no terreiro, por todos os anos de trabalho e de pó naquela terra, por todas as fotografias esmaltadas nas campas do cemitério, por todas as horas anunciadas pelo sino da igreja, contra a morte, contra a morte, contra a morte, as pessoas seguiam aquele caminho.
Suspenso, o universo contemplava Galveias.
Costumo dizer que, no interior, até a noção de tempo é outra. A vida corre mais descomplicada e lenta. Às vezes, penso que é isto que falta à cidade grande: redescobrir o lirismo que foi atropelado pela pressa diária de (sobre)viver.
Mariane Domingos
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