Começo esta resenha com a esperança de que ela inaugure uma longa série dedicada a Thomas Mann. Conheci o escritor alemão graças à belíssima coleção que a Companhia das Letras começou em 2015, com Doutor Fausto e A Morte em Veneza & Tonio Kröger, e seguiu, neste ano, com Os Buddenbrook.
Doutor Fausto e Os Buddenbrook são obras-primas do alemão, que mostrou todo seu fôlego narrativo nesses clássicos de mais de 600 páginas. Como não havia lido nada de Mann ainda, resolvi começar com uma leitura menos densa: A Morte em Veneza & Tonio Kröger. Seria uma espécie de teste para ver se eu poderia comprar, sem remorso de consumismo compulsivo, o restante da coleção. Digamos que o alemão passou com louvor. Que venham os outros livros para minha estante! 🙂
A primeira novela, A Morte em Veneza, conta a história de Gustav von Aschenbach, um célebre escritor obcecado pela perfeição em seu trabalho. Alcançou a fama ainda cedo, mas, nem por isso, superestimava seu talento. Tinha a consciência de que seus feitos eram resultado de autocontrole e muita disciplina, como vemos neste trecho:
Verdade é que desde a sua juventude Aschenbach considerara a pouca satisfação consigo mesmo a essência e íntima natureza do talento. Por causa dela, tinha o hábito de reprimir e temperar o sentimento, sabendo que este tende a se contentar com a aproximação feliz e a perfeição parcial.
A insatisfação com o que vinha produzindo leva Aschenbach a uma decisão: era preciso respirar novos ares. Ele parte de Munique para Veneza, onde uma série de acontecimentos derruba toda monotonia de sua vida.
O escritor, acostumado a “reprimir e temperar o sentimento”, se encanta profundamente pelo jovem polonês Tadzio e passa a observá-lo de longe, em uma perseguição que beira à obsessão. Ele fica hipnotizado pelo rapaz, descobre seus hábitos e prevê todos os seus movimentos por Veneza:
Não pode haver relações mais estranhas, mais melindrosas do que as de pessoas que só se conhecem de vista, que se encontram e se observam mutuamente todos os dias, hora por hora, e todavia estão coagidas, devido a convenções ou caprichos particulares, a fingirem fria indiferença, sem se cumprimentarem nem falarem uma com a outra. Entre elas reinam desassossego e exaltada curiosidade, reinam a histeria provocada pela necessidade – jamais satisfeita e artificialmente reprimida – de contato e intercâmbio e sobretudo uma espécie de constrangido respeito.
Aschenbach é tomado pelos arroubos típicos de uma paixão platônica adolescente. Soma-se ao seu estado de descontrole, uma ameaça silenciosa que paira sobre a cidade de Veneza: o cólera. O medo de afugentar os turistas em plena alta temporada mascara a epidemia. Aschenbach percebe que algo estranho está acontecendo, mas isso lhe parece tão pequeno diante da plenitude proporcionada pela figura do jovem Tadzio.
A reta final dessa breve novela tem um ritmo acelerado. O título já anuncia que há uma tragédia na história, mas a dúvida sobre qual personagem será a vítima nos acompanha quase até a última página. A narrativa de Mann traduz com maestria o caos da cidade e a confusão mental que acomete Aschenbach. Nos sentimos em Veneza, desviando do cólera e tentando sussurrar ao ouvido do personagem palavras salvadoras que o tragam à razão.
A segunda novela do livro, Tonio Kröger, guarda algumas similaridades com A Morte em Veneza, entre elas o fato de o personagem principal, que dá título à história, também ser um escritor.
Kröger é filho de um cônsul de “temperamento nórdico” e de uma mulher do sul, de cabelos negros e “de um indefinido sangue exótico” (traço autobiográfico, já que a mãe de Mann era brasileira, descendente, em parte, de índios). O resultado dessa mistura, segundo ele mesmo descreve, foi:
…um burguês que se desencaminhou na arte, um bohémien com saudade do berço, um artista com má consciência.
O grande dilema de Kröger é sua busca por um lugar no mundo. Desde a juventude, sente-se dividido entre esses dois universos: as artes e as letras, mais identificados com o lado materno, e a vida burguesa e burocrática, reflexo paterno. Kröger não se sente aceito em nenhum dos dois ambientes e, embora tenha optado pela escrita, ressente-se a todo momento do caminho que tomou:
A literatura não é profissão alguma, e sim uma maldição, fique sabendo. Quando essa maldição começa a ser perceptível? Cedo, terrivelmente cedo. Numa época em que ainda deveríamos viver em paz e concórdia com Deus e o mundo. Você começa a se sentir estigmatizado, em uma misteriosa contradição com os outros, os seres comuns, normais, o abismo de ironia, descrença, oposição, conhecimento, sentimento que os separa das criaturas humanas se abre mais e mais profundamente, você está sozinho e daí em diante não existe mais nenhuma compreensão. Que destino!
Kröger não se adapta. Seu “amor de burguês pelo que é humano, vivo e comum” não é bem visto no círculo de intelectuais e artistas que se acreditam superiores às trivialidades humanas.
Estou entre dois mundos, em nenhum dos dois estou em casa, e por conta disso, tenho uma vida um tanto difícil.
Enquanto Kröger vive em meio às incertezas, tentando encontrar seu espaço, Aschenbach é o rei das certezas, buscando sobreviver ao imprevisto que lhe atravessa o caminho. Se tivesse que resumir essas duas novelas de Mann em uma frase, escolheria uma que aparece duas vezes, com pequenas variações, em Tonio Kröger:
Muitos necessariamente se perdem num descaminho porque para eles não existe de nenhum modo um caminho certo.
Aschenbach se perdeu. Kröger se perdeu. Quem nunca se perdeu na vida? É por isso que Mann é literatura clássica. Certeiro e atual, não importa a data da leitura.
ps.: os próximos lançamentos desta coleção devem ser As confissões do Impostor Felix Krull e A Montanha Mágica. Vamos ficar de olho!
A Morte em Veneza e Tonio Kröger
Companhia das Letras
R$ 35,80
194 páginas
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Mariane Domingos
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25 de maio de 2016 at 17:22
Estou lendo ” a montanha mágica” agora. Tenho gostado bastante da maioria do livro, mas tem horas que algumas descrições e devaneios cansam um pouco. É realmente uma montanha pra escalar. Estava pensando em começar “os budenbrook” logo após, pois disseram que flue de uma forma mais simples e chega a ser melhor que “a montanha mágica”,mas acho melhor ler algo mais curto do Mann por enquanto. Obrigado pelos apontamentos e espero ansiosamente pela próxima resenha. Parabéns.
28 de maio de 2016 at 16:32
Lucas, acho que você vai gostar de A Morte em Veneza & Tonio Kröger! Não li A Montanha Mágica (estou ansiosa pela edição da Companhia!), mas acredito que essas duas novelas sejam uma leitura bem menos densa. E obrigada pelo incentivo, espero em breve publicar outra resenha do Mann por aqui! Provavelmente, será sobre Os Buddenbrook. 😉