Uma mesma história conduzida por vários narradores desperta minha admiração. Quando o enredo tem mistério, fico mais encantada ainda, pois o escritor precisa ser muito habilidoso para não se contradizer ou deixar pontas soltas. Essa característica é o segundo motivo pelo qual amei o livro A pista de gelo. O primeiro, bem mais passional, é porque ele foi escrito por Roberto Bolaño, do qual sou fã desde 2011, quando fui arrebatada pela leitura, densa e incrível, de sua obra-prima, 2666.
O romance A pista de gelo é construído a partir de três versões de um mesmo crime, ocorrido em uma cidade da costa espanhola. Cada capítulo é narrado por um destes três personagens: Enric Rosquelles, um empreendedor catalão, arrogante e metido a político, capaz de tudo por uma bela patinadora; Gaspar Heredia, um mexicano que depois de tentar dar certo como poeta acaba como vigilante noturno em um camping; e Remo Morán, um chileno, também com pretensões de escritor, que já transitou por quase todas as profissões e negócios até conseguir estabilidade financeira.
O tom confessional dos capítulos nos aproxima da história. Ora temos a sensação de que estamos em uma daquelas salas de filme policial onde se tomam os depoimentos dos suspeitos, ora nos imaginamos em uma sessão de terapia, na qual os personagens, deitados no divã, nos contam sobre suas vidas. Enric, Gaspar e Remo relatam os fatos que testemunharam ou viveram e parecem, a todo momento, querer se justificar ou se livrar de alguma culpa.
Não por acaso, as três nacionalidades dos personagens remetem a lugares bem conhecidos de Bolaño, que nasceu no Chile, passou a adolescência no México e faleceu, precocemente, aos 50 anos, na Espanha. Essa experiência multicultural do escritor só enriquece sua narrativa, pois traz mais realidade às descrições de lugares e comportamentos.
Outro aspecto interessante do livro é a variedade de temas. Bolaño consegue costurar um caso policial com paixões arrebatadoras e ainda construir uma crítica sociopolítica ao questionar o valor de certas instituições e a transformação de caráter típica de quem chega ao poder ou ao sucesso.
Nenhum dos temas é central. E a mistura deles faz com que o ritmo de leitura seja eletrizante. Eu comprei o livro durante uma viagem ao Chile e o li inteirinho no voo de volta ao Brasil. Sempre que pensava em parar, havia algo que eu queria descobrir no próximo capítulo – detalhes sobre o crime, a evolução de um romance ou ainda o fracasso de algum personagem. É clímax atrás de clímax.
Fora todas essas qualidades, Bolaño tem uma escrita deliciosa. Foi a primeira vez que o li em espanhol e tive a impressão de que esse idioma consegue deixar sua escrita ainda mais fluida. Palavras simples e muito bem escolhidas. Frases na medida que dão intensidade à leitura.
Deixo aqui um trechinho para que vocês também fiquem com vontade de conhecer esse escritor, seja em português ou em espanhol!
Las piedras que recordaba azules son ahora grises. Los caminos que recordaba luminosos están ahora cubiertos de sombras. Así que metí el freno, di la vuelta en médio de la carretera y volví a Z. Hasta que no me hube alejado lo suficiente evité mirar por el retrovisor. Lo perdido está perdido, digo yo, y hay que mirar hacia adelante…
Mariane Domingos
Últimos posts por Mariane Domingos (exibir todos)
- [Resenha / Review] A Vida Pela Frente / The Life Before Us - 14 de março de 2021
- [Resenha / Review] The Vanishing Half - 15 de fevereiro de 2021
- [Resenha / Review] Garota, Mulher, Outras / Girl, Woman, Other - 4 de janeiro de 2021
0 Comentários
1 Pingback