Em tempos de mulheres belas, recatadas e do lar, “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, nos lembra do muito que avançamos nos últimos cinquenta anos, e do tanto que ainda falta conquistarmos.
O livro conta a história da personagem do título, uma mulher brilhante, que poderia ter sido engenheira, escritora ou cientista, mas no Rio de Janeiro dos anos 40, mais especificamente no bairro muito familiar da Tijuca, estava fadada a ser dona de casa.
Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras “Do lar”.
Os nãos que Eurídice ouviu na vida foram muitos. Convidada por Heitor Villa Lobos para tocar flauta doce em seus cantos orfeônicos, tem o pedido recusado pelos pais, que não acham que aquele é o caminho para uma boa moça.
O segundo não vem do marido. Já casada, com um homem que considera bom porque coloca dinheiro em casa e não levanta a mão para ela, além de conversar com as crianças, Eurídice descobre que entre lavar cuecas, servir o almoço com cebolas disfarçadas, exigência de Antenor, e manter as crianças asseadas e limpas, sobra um tempo desmesurado para pensar na vida.
E pensar na vida – ou mais precisamente, no que ela poderia ser para além das paredes daquela casa – é algo a que Eurídice não pode se permitir. Por isso, encontra desafios que podem parecer prosaicos, mas alimentam sua alma. Na cozinha, vira uma espécie de Rita Lobo. Começa a fazer os pratos dos livros de culinária que tem na casa, mas logo termina todas as receitas e passa a inventar seus próprios pratos.
Em um caderno de capa dura preta, escreve linha por linha todas aquelas maravilhas que nos deixam com água na boca, e que a família nem liga. Decide apresentar as receitas ao marido, pensa que pode publicá-las, mas a resposta é um grande balde de água gelada. Antenor dá uma gargalha e diz:
-“Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa?”
Ela desiste, mas sua cabeça não permite que ela fique sentada. Tenta outras iniciativas, tem outras ideias frustradas pelo marido. Passa a vida tentando se enquadrar nos padrões exigidos da família tijucana, mas Eurídice não é comum. Um dia, de tanto olhar para a estante tentando esvaziar a cabeça, finalmente a enxerga. E descobre com ela Tolstoi, Flaubert, Shakespeare. Parte para outra empreitada, que não a tira dos muros da casa, mas permite certa independência. Toma posse do escritório do marido, compra uma máquina de escrever e domina a casa com seus tectectectec. Melhor som do que esse não poderia haver.
Eurídice, é claro, não é a única a sofrer com o machismo da sociedade carioca de então. Com breves pinceladas sobre outras personagens, Martha mostra que cada mulher da trama tem algum traço, habilidade, pensamento ou vontade que poderia ter sido, não fossem as restrições impostas pelo cotidiano.
Uma delas é Guida, a irmã de Eurídice. Não vou estragar a surpresa com o enredo dela, mas Guida, mais corajosa que a irmã, toma uma decisão arriscada na vida e tem que batalhar muito para conseguir se segurar acima da linha d’água. O triste é que ela, firme e perseverante, também tem que buscar um casamento para chancelar a vida perante os olhos da sociedade.
“A vida invisível de Eurídice Gusmão” é despretensioso, não tenta reinventar o romance, e por isso mesmo é uma delícia de ler. Logo na primeira página, Batalha nos lembra que a história das duas irmãs contadas ali poderia ser a de qualquer uma de nossas avós. É verdade. Minha avó paterna é inteligente, bonita, sabia falar francês e tocar piano. Casou cedo com um homem que não conseguia se estabelecer em nenhum emprego e comeu o pão que o diabo amassou na vida por causa do casamento ruim.
Minha avó materna não terminou nem o ensino fundamental, porque tinha que trabalhar e, quase tão cedo quanto se casou, também se separou do meu avô, que como muitos homens no livro de Batalha, tinha problemas com álcool. Com pouco menos de 40 anos, teve que se reinventar para sustentar os três filhos. Conseguiu, mas com oportunidades certas, poderia ter sido muito mais.
As nossas escolhas hoje são mais fáceis porque as delas não existiam. Se hoje eu posso escolher ser o que eu quiser – até dona de casa -, e se a minha sobrinha vai ter ainda mais caminhos abertos a sua frente, é por causa dessas avós que puderam tão pouco.
Mas ao mesmo tempo que avançamos, continuamos, em muitos sentidos, presos aos mesmos padrões de mais de meio século atrás. Nas lojas de brinquedos, há vassouras, rodos, tábuas de passar, máquinas de lavar e fogões em miniatura – todos presentes para as meninas. Para os meninos, mesas de marcenaria, capacetes de bombeiro, estojos de alquimia. Ainda podemos ensinar muito às futuras gerações.
PS: Martha Batalha também recebeu muitos nãos, mas ao contrário de nossa protagonista, ela pôde persistir.
Tainara Machado
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4 de maio de 2016 at 22:06
Uma provocação. E se, apenas para subverter outro padrão, chamássemos Martha de ‘Batalha’? É um sobrenome e tanto para uma mulher determinada.
4 de maio de 2016 at 22:34
Foram hábitos do ofício, eu diria! Provocação aceita, Gabriel! 🙂
6 de maio de 2016 at 03:44
Tainara, resenha linda! Muito bem escrita. É mesmo por aí. Hoje a gente pode escolher, e pode escolher até ser dona de casa. Mas não naquela época. (Pensando bem, mesmo hoje, nem todas podem escolher). Interessante que suas avós dariam protagonistas de um romance parecido com Eurídice. Todas as avós dariam, pelos seus feitos e, principalmente, não feitos. Beijos.
6 de maio de 2016 at 15:35
Oi Martha! Muito obrigada, fico muito contente que você tenha lido a resenha e gostado! Realmente adorei o livro! A leitura é muito prazerosa (me peguei sentada na frente do restaurante, terminando um pedacinho do livro enquanto todo mundo me esperava na mesa lá dentro) e, por mais que pareçam tempos passados, refleti muito sobre escolhas e caminhos até hoje oferecidos às mulheres. Além de, claro, lembrar em vários trechos das minhas avós! Obrigada e ficamos na expectativa dos próximos livros! 🙂
9 de maio de 2016 at 20:09
🙂 Obrigada você, Tainara. O maior retorno que eu posso ter é este, de saber que a leitura foi legal.
19 de maio de 2016 at 14:27
Gostei muito da resenha. Fora o que você comentou, o livro tem uma ironia e uma sutileza no humor que também cativa nós leitores. Me arrisco a dizer que para a classe social em que estão inseridas as personagens Eurídice e Guida muita coisa mudou sim, mas e hoje? Eu reconheço minha mãe nesses padrões, reconheço uma prima minha, reconheço muitas mulheres pobres ainda presas à esse universo da esposa, bela e recatada do lar, infelizmente.
Ademais, gostaria de convidá-las para a reunião do Clube da Vila sobre esse livro, se forem de São Paulo! Acontecerá no dia 13/06/2016, às 20h. É na Livraria da Vila Fradique Coutinho. Beijos!
20 de maio de 2016 at 20:27
Oi Jéssica! Sem dúvida ainda temos muitas mulheres presas a esses padrões. Ao mesmo tempo, acho que até por causa disso a discussão se tornou muito mais presente na sociedade. Temos mais movimentos feministas, mais mulheres que não querem se reconhecer nesses padrões,mais discussão sobre gêneros na sociedade. O livro da Martha teve um “timing” perfeito! Adoraria participar do Clube da Vila, mas infelizmente estarei viajando neste período. Mas se organizarem outras reuniões ou eventos, nosso email de contato é blogachadoselidos@gmail.com. Ficaremos felizes em participar!