Comecei este ano lendo um clássico. Em 2015, minha lista de leitura foi quase toda contemporânea, o que é sempre muito bom para lembrar que a literatura está aí firme e forte, mas os clássicos são os clássicos. Sempre achei mágica a ideia de ler algo que foi escrito há mais de um século. E, nesse sentido, Dostoiévski é um dos meus mágicos preferidos.
O duplo, minha escolha para inaugurar 2016, foi lançado pouco depois de Gente pobre (1846), livro de estreia do escritor russo. O herói é o senhor Golyádkin, um pequeno funcionário, pertencente à nona classe da escala burocrática russa (ou seja, sem nenhuma possibilidade de movimentação), que carece de habilidades para o convívio social e, ao mesmo tempo, sonha em transitar pelas altas esferas. Mais do que dinheiro, falta-lhe traquejo. Neste trecho, em conversa com seu médico, ele deixa isso claro:
…gosto da tranquilidade e não do burburinho da alta sociedade. Lá entre eles, digo, na alta sociedade, Crestian Ivánovitch, é preciso saber fazer rapapés (nisso o senhor Golyádkin roçou o chão com um pé), lá se cobra isso, e também se cobram trocadilhos… capacidade de fazer elogios inebriantes… é isso que lá se cobra. Mas isso eu não aprendi, Crestian Ivánovitch, não aprendi esses artifícios; faltou-me tempo. Sou um homem simples, sem rebuscamentos e sem brilho externo.
Depois de uma mal sucedida e humilhante tentativa de figurar nos círculos que desejava, Golyádkin encontra, em uma noite nas ruas de São Petersburgo, seu duplo. Mesmas feições, mesmo nome, mesma profissão, mas uma diferença: a personalidade. Golyádkin segundo tinha a máscara, “o brilho externo” que faltava ao nosso herói.
Tal a sua habilidade para ganhar as pessoas, que logo consegue derrubar a armadura de Golyádkin primeiro. O pequeno funcionário abandona sua tendência à solidão e deposita toda sua confiança no novo conhecido, que, aos poucos, vai revelando seu caráter duvidoso. Nosso herói se envolve, então, em uma trilha sem volta para desmascarar seu duplo.
Nesse romance, já notamos traços dos personagens Raskólnikov, de Crime e Castigo, Ivan Karamázov, de Os Irmãos Karamázov, e outros da obra do escritor russo. Dostoiévski soube, como poucos (e nesse seleto grupo incluo nosso gênio Machado de Assis), trabalhar na literatura os meandros da consciência humana – um tema sempre atual. Esse era um dos truques de mágica que ele usava para eternizar sua escrita, torná-la clássica.
Ítalo Calvino, em seu livro Por que ler os clássicos? disse:
…o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura das atualidades numa sábia dosagem. (…) Talvez o ideal fosse capturar a atualidade como rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. (…) É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
A duplicidade da Rússia do século XIX, narrada pela perspectiva do atrapalhado Golyádkin, foi o rumor que começou (muito bem) meu 2016 literário.
Mariane Domingos
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31 de março de 2016 at 04:14
Esse tema chamou minha atenção pela primeira vez quando li o conto O homem de areia, do Hoffmann (que é fenomenal, incontornável e fez com que Freud escrevesse sobre O Inquietante) e depois disso comecei a procurar outras obras. Fui fuçar começando na Bíblia e chegando no Oscar Wilde… Eis que caiu em minhas mãos O Duplo, que, para mim, foi um divisor de águas. Tirando os sensacionais Irmãos Karamazov e O idiota, acho o melhor com todo o lance do tema e do experimentalismo que balançou a crítica da época.
O legal é ver a maneira com que o tema da obra aparece em outros autores. Machado, por exemplo, tem contos geniais com o tema do duplo, além de um dos melhores livros dele – Esaú e Jacó – ser, desde o título, praticamente um jogo de espelhos. Enfim, maravilhoso! Ótima maneira de iniciar 2016, Mariane!
1 de abril de 2016 at 15:23
Ana, quando você falou de como esse jogo de espelhos aparece muito na literatura, lembrei na hora de O Homem Duplicado, do José Saramago. Ali ele questiona a ideia de identidade, como o personagem principal se enxerga e gostaria de ser enxergado pela sociedade. Não sabia que, de certa forma, o “original” tinha sido Dostoiévski. Fiquei com vontade de ler O Duplo e de reler Saramago! Adorei o post e o comentário!
1 de abril de 2016 at 17:55
Tatá, será que O Homem Duplicado seria uma boa pedida pra eu dar uma nova chance ao Saramago? Pelo menos, gosto da temática. haha
2 de abril de 2016 at 14:45
Acho ótima oportunidade! E é um livro bem levinho dele (acho que foi o primeiro que li!)
1 de abril de 2016 at 17:54
Ana, fiquei com muita vontade de ler O Homem de Areia! Achei O Duplo ótimo também. Tive um pouco de dificuldade para superar as primeiras páginas, mas tem um momento que a história engrena de tal forma que eu já estava quase querendo entrar no livro e dar um chacoalhão no Golyádkin! haha E você acredita que nunca li Esaú e Jacó?! É uma das poucas falhas no meu currículo machadiano. Preciso consertar isso já! A temática da consciência humana sempre me lembra muito O Alienista, que, para mim, é um dos melhores trabalhos de Machado, porque reúne tudo que ele tem de melhor: um olhar irônico sobre o comportamento humano, uma língua afiada para política e uma capacidade incrível de metaforizar as situações cotidianas. Sou fã!