Nesta última leitura, um mesmo aspecto chamou atenção de nós duas, por isso resolvemos escrever juntas o post de hoje! Para a próxima semana, avançaremos mais dois capítulos (até a página 119, se você tem a edição da foto).
Por Tainara Machado e Mariane Domingos
O drama familiar e as amarras impostas a Kambili e Jaja por um pai absurdamente autoritário são o núcleo de Hibisco Roxo, mas o livro também trata de outros vários temas, entre eles a herança da colonização europeia na Nigéria e a oposição aos costumes e modos de vida ancestrais daquele povo.
Papa é, nas palavras da tia de Kambili, muito “colonizado”. Ele quase nunca fala em igbo, a língua nativa, e gosta que mesmo os habitantes mais simples de seu vilarejo se esforcem para falar inglês. Descartou as religiões “pagãs” e tudo o que, na sua ética bastante particular, seja considerado ímpio, inclusive seu pai, com quem não fala e a quem mal permite que os filhos visitem.
O confronto entre costumes locais e os modos de vida europeu transparece em inúmeros trechos, mas é particularmente interessante em uma reflexão de Kambili diante do comentário de uma das freiras que ensinavam em seu colégio.
Passávamos todo Natal na cidade onde havíamos nascido. Irmã Verônica chamava isso de migração anual dos igbo. Ela não entendia, dizia com seu sotaque irlandês que fazia as palavras rolarem sobre sua língua, por que tanta gente da etnia igbo construía casas enormes em suas cidades natais para passar uma ou duas semanas em dezembro, enquanto tinham residências bem menores nas cidades grandes onde viviam o resto do ano. Eu sempre me perguntava por que irmã Verônica precisava entender aquilo, quando era simplesmente o nosso jeito de fazer as coisas.
No âmbito familiar, especialmente na relação conturbada de Papa com seu próprio pai, esse confronto também é nítido. Nas visitas breves que faz a seu avô paterno, Kambili tenta encontrar os motivos que levaram aquele homem a ser considerado ímpio, porque, se Papa afirmou que esses motivos existem, então eles têm que estar lá, embora ela não os veja.
A relação com o avô materno era totalmente diferente. Papa reverenciava o sogro, aquele homem “que abriu os olhos antes da maioria do nosso povo” e “foi um dos poucos que acolheram os missionários”. Na visão de Papa, o avô materno de Kambili, diferente de seu próprio pai, “fazia as coisas do jeito certo, do jeito que os brancos fazem, não como nosso povo faz agora”.
“Fazer as coisas do jeito certo”. Essa é uma frase que define muito bem a postura intolerante de Papa. Ele acredita ser o dono da verdade. E o pior é que ele detém o poder político, social e econômico necessário para impor a sua verdade. Papa é dono do maior jornal do país, foi nomeado chefe político da comunidade em que nasceu, é um dos principais benfeitores da escola dos filhos, e, em casa, é a única voz (ao menos por enquanto). Ele se afirma pelo seu dinheiro, pela sua posição de pai, pela sua influência política e até pela sua força física – para o infortúnio de Mama que sofre com as surras.
Em 2009, Chimamanda participou de um TED, com a palestra “O perigo de uma única história”. Dona de uma oratória impecável e de um talento para tirar grandes lições de episódios que parecem cotidianos, ela discorre sobre estereótipos, verdades absolutas e poder. Em um trecho desse discurso, ela resume bem o que vimos nos dois últimos capítulos de Hibisco Roxo:
É assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, é será o que eles se tornarão. É impossível falar de uma única história, sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que, em tradução livre, corresponde a: “ser maior do que o outro”. Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são definidas pelo princípio de “nkali”. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa.
Não precisamos ir muito longe para ver os efeitos nocivos de uma única história. Nosso povo também é resultado de um longo processo de colonização. E aqui essa condição de colônia já foi tão assimilada que raramente questionamos a religião, a língua ou a cultura que nos foi imposta. Nos consideramos exemplares “ocidentais”, embora sejamos vistos como latinos fora do país. No livro O povo brasileiro, talvez o estudo histórico-antropológico mais relevante que temos sobre a formação do nosso povo, Darcy Ribeiro fala sobre o processo de colonização:
No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si mesmos.
Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.
Colonizar é “gastar gente, aos milhões”. E Chimamanda, em Hibisco Roxo, nos lembra disso a todo o momento. Como ela mesma diz, é importante buscar outras perspectivas, porque “histórias importam, muitas histórias importam”.
ps.: vale a pena assistir ao discurso completo de Chimamanda no TED. Clique aqui para acessar o vídeo.
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25 de março de 2016 at 20:11
Interessante essa questão da colonização. Como todas as nações que passaram pelo processo, nossa identidade acabou sendo alicerçada na ideia de que as tradições e costumes do povo – alheios ao cristianismo e ideais europeus – são desvios que não passaram pelo processo civilizatório. Um exemplo é a religião. Tal qual Papa, fomos criados para pensar que existe o lado “certo” – cristão – versus o “bárbaro” – religiões oriundas da África e tradições indígenas.
O mesmo discurso do pai da protagonista pode ser ouvido em qualquer lugar de nosso país quando uma pessoa refere-se a alguém que cultua outros deuses. A realidade nigeriana mostrada por Chimamanda não difere muito, nesse quesito, da nossa.
26 de março de 2016 at 13:37
O “civilizado” versus o “bárbaro” é mesmo um dos efeitos mais nocivos da colonização, Ana, porque suprime a diversidade e, consequentemente, a tolerância e a capacidade crítica das pessoas. São cicatrizes que temos até hoje e que só não enxerga quem preferiu acreditar na tal da “única história”.
28 de março de 2016 at 18:49
Não mesmo. Mas acho que por a colonização lá ser mais recente há uma oposição maior entre as crenças consideradas “bárbaras” e a igreja católica. É pelo menos um traço presente todo o tempo no livro – o conflito entre o que prega o padre e o que são as tradições da comunidade. Aqui, acho que somos mais “domesticados”, o que aumenta a dificuldade em aceitar o diferente, apesar de nos considerarmos um povo tolerante.
26 de março de 2016 at 13:21
Cada vez q a leitura avança aspectos culturais, usos e costumes são colocados em destaque e enfatizam estas questões apontadas sobre as heranças da colonização.
Através do Papa vemos a definição autoritária daquilo que “é certo ou errado” e o “pecado”. E sua maneira de agir e se comportar provoca nos filhos e na mulher a insegurança e o medo. As falas e as ações de Kambili estão sempre pautadas na ideia de agradar a figura paterna, deixando evidente que ele possui uma postura de imposição de valores. Valores que não devem ser contrariados ou questionados.
Não vejo a hora de Kambili começar de fato a problematizar tais valores, não apenas refletindo, mas questionando Papa, através de uma voz ativa. Assim como seu irmão fez nos primeiros capítulos.
Ah! Valeu muito a pena assistir ao discurso de Chimamanda no TED, simplesmente ótimo.
26 de março de 2016 at 13:39
Também torço por uma grande virada de Kambili, Gabi! Não vejo a hora de ela ser a filha problemática de Papa. haha
E a Chimamanda é uma mulher inspiradora mesmo. Amo ouvir seus discursos e ler seus artigos. Vamos procurar mais conteúdo dela para compartilhar com vocês!
28 de março de 2016 at 18:34
Acho que uma das questões que mais me incomoda em Papa é justamente esse poder de censurar até os pensamentos de Kambili. Ela fica triste quando não pensa em algo que poderia agradá-lo, mas essa submissão é tão forte que não é algo só por aparência. Nem quando está sozinha, ou só com Jaja, ela consegue ser crítica ao comportamento de Papa, por mais que vez ou outra já tenha identificado algumas contradições no que ele fala. O medo é tão grande que ela fala pelos silêncios, ou pelos olhos, como diz, com o irmão.
Fico na torcida, assim como vocês, por uma grande reviravolta, mas eu acho que é algo que não virá de Kambili, e sim de Jaja. Vamos acompanhar!
28 de março de 2016 at 18:42
A Chimamanda falou um pouco mais sobre “histórias únicas” e outras questões aqui nessa entrevista (http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/21/cultura/1458574326_016768.html)!