Notas de rodapé (página 11 de 29)

Lemos, gostamos (ou não) e indicamos (ou não). Aqui, colocamos nossas impressões sobre livros que, de alguma forma, nos marcaram. Tem opinião, mas não tem spoiler!

[Resenha] A Noite da Espera

A folha de rosto de A Noite da Espera, novo romance de Milton Hatoum que chega às livrarias pela Companhia das Letras, traz o seguinte verso do poeta sírio Adonis:

A solidão é a tinta da viagem.

Martim, o jovem narrador desse romance, primeira parte da trilogia O Lugar Mais Sombrio, descobrirá essa verdade rapidamente. Depois da separação dos pais, é levado a se mudar para Brasília na companhia do pai. Deixando o ambiente que lhe é familiar, a capital recém-criada, ainda quase vazia e marcada pela tensão do golpe militar de 64, é um reflexo do cotidiano que Martim enfrenta em casa: a aridez da figura paterna acentua a distância da mãe que dá notícias apenas esporadicamente, a partir de um sítio escondido do qual se sabe muito pouco.

Na contracapa desta edição, que recebemos autografada por Hatoum (pulinhos de alegria!), a crítica literária Leyla Perrone-Moisés comenta que da multidão de escreventes que temos hoje, poucos merecem o título de escritor, qualificativo que ela atribui ao escritor amazonense. Sem dúvidas, Hatoum é uma das mais potentes vozes no cenário literário brasileiro, capaz de se reinventar a cada novo romance.

Leia mais

[Resenha] O Fim do Homem Soviético

Fico andando em círculos ao redor da dor. Não consigo me afastar. Na dor, existe tudo: tanto sombras como solenidade; às vezes, creio que a dor é uma ponte entre as pessoas, um elo oculto; mas outras vezes penso desesperada que aquilo é um abismo.

Difícil imaginar como Svetlana Aleksiévitch sobrevive ao convívio com tantos e tão diversos sofrimentos. Mais impressionante ainda é sua maestria em transformar essa dor em literatura.

Sua escrita é pungente, mas hipnotizante. Por mais incômodos que sejam seus relatos, uma vez que começamos a lê-los, é impossível não ir até o fim. Aleksiévitch nos arranca de nossa zona de conforto e mostra que a consciência da realidade é um caminho sem volta.

Sua matéria-prima são as emoções do homem comum. A História já se ocupou dos fatos. Aleksiévitch dá voz aos sentimentos e à infinita quantidade de verdades humanas.

O Fim do Homem Soviético reúne entrevistas que a escritora e jornalista realizou entre 1991 e 2012 com pessoas que viveram a queda do império soviético. De um momento a outro, uma estrutura gigantesca ruiu. A chave virou de um socialismo sangrento para um capitalismo selvagem. O território unificado se dividiu. Na teoria, o homem soviético entrou em extinção. Na prática, várias Rússias foram confinadas dentro de uma mesma Rússia, dando origem a uma nação contraditória e cheia de conflitos, em que a intolerância e o ódio estão prontos para explodir a qualquer momento.

O choque entre gerações é gritante. Avós viam em Stálin um deus. Filhos que só queriam poder vestir jeans e comprar eletrônicos se rebelaram e, em vez de liberdade, ganharam um capitalismo atroz e uma democracia frágil (para não dizer falsa). Netos substituíram o culto à pátria pelo culto ao dinheiro. O que eles têm em comum? O sofrimento ronda a todos.

Leia mais

[Resenha] Meio Sol Amarelo

Em sua famosa palestra para o TedTalks, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie falou do perigo da história única, da visão comum e unificada da história africana, um legado do colonialismo. Em Meio Sol Amarelo, livro de 2008 reeditado recentemente pela Companhia das Letras, a autora busca justamente dar voz e cores para a Guerra da Biafra, vista quase sempre por uma única lupa: como mais uma das tantas guerras civis que assolaram o continente.

O centro da narrativa é a casa de Odenigbo e Olanna em Nsukka, cidade universitária nigeriana. Odenigbo é um professor bem relacionado no campus, seguro de si, com voz ativa sobre a independência nigeriana, sobre costumes e heranças do colonialismo. Já Olanna é descendente da classe alta do país, filha de um influente empresário, mas que não se reconhece em seu meio familiar. O personagem mais empático, contudo, é Ugwu, que chega ainda muito novo para trabalhar na casa de Odenigbo, saído de um pequeno vilarejo no qual cada pedaço de peixe era disputado pela família. Seu assombro sobre os costumes descritos por sua tia nos cativa logo na primeira página:

Leia mais

[Resenha] Gente Pobre

Gente Pobre, primeiro romance de Fiódor Dostoiévski, foi publicado quando ele tinha apenas 25 anos. Antes mesmo do lançamento oficial do livro, o escritor já era sensação nos círculos literários russos, que se surpreenderam com a nova abordagem que o jovem trouxe à chamada “escola natural”, corrente do realismo russo em voga na época.

Nesse romance epistolar, Dostoiévski conta a história de Diévuchkin, um funcionário público das escalas mais baixas, e Varvara, uma jovem órfã e injustiçada. Por meio das cartas que os dois amigos trocam, nota-se que, a despeito de toda penúria de recursos que enfrentava, Diévuchkin age como um verdadeiro protetor da garota. Ela, por sua vez, também sempre se mostra disposta a ajudá-lo, sem se importar com os mexericos que tal relação poderia suscitar.

A pobreza dos personagens contrasta com a nobreza de seus sentimentos – uma fórmula até então tímida na literatura russa. Dostoiévski arrisca-se evidenciando que os pobres também eram capazes do comportamento virtuoso que se imaginava exclusividade dos ricos generosos. A classe que sempre fora retratada como receptora da bondade alheia se manifesta solidária, de maneira ainda muito mais genuína do que aqueles que abdicavam de recursos que não lhe fariam falta.

Dostoiévski retrata as classes oprimidas sem cair em uma análise excludente ou superficial, como acontecia nos ensaios fisiológicos dos tipos urbanos, que se apoiavam no mote clichê do homem pobre com destino trágico, uma vítima passiva de infortúnios.

Leia mais

[Resenha] Middlesex

Nasci duas vezes: primeiro como uma bebezinha, em janeiro de 1960, num dia notável pela ausência de poluição no ar de Detroit; e de novo como um menino adolescente, numa sala de emergências nas proximidades de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974.

Middlesex, segundo romance de Jeffrey Eugenides, publicado em 2002, é, desde o princípio, claro sobre a história que será narrada: a vida de uma menina que, por uma alteração genética desconhecida e rara, se descobriria um menino na adolescência. Calíope Stephanides, que se tornaria Cal anos mais tarde, é hermafrodita. Um assunto que continua sendo tratado com preconceito e estranhamento, ainda que hoje se fale com um pouco mais de naturalidade sobre identidade de gênero, é o tema de um romance épico sobre formação e sexualidade.

O romance, com ares de odisseia familiar, é muito bem construído. Eugenides opta por dedicar por parte do livro à trajetória da família Stephanides, perfazendo o caminhos percorridos por uma mutação genética, a 5-alfa-redutase, de baixíssima incidência, que irá definir o destino da personagem central do livro

A história começa com um episódio inusitado, a cerimônia da colher. Embora seja narrado em primeira  pessoa, por Calíope/Cal, o narrador é onisciente quando se trata dos fatos anteriores ao seu nascimento. Presenciamos assim o momento em que Desdêmona balança a colher de  prata guardada na caixinha de bichos da seda que trouxe consigo da Europa e diz que o segundo bebê de Tessie e Milton seria  um menino.

Leia mais

Posts mais antigos Post mais recentes

© 2024 Achados & Lidos

Desenvolvido por Stephany TiveronInício ↑