Antes de escrever este texto, li duas vezes Um Copo de Cólera. A primeira leitura durou uma semana, dividida em intervalos de outras atividades. Terminei com a sensação de que havia algo no texto que me escapava. A segunda tentativa foi em uma manhã, de forma ininterrupta e em voz alta. As duas experiências me deixaram com uma certeza: o personagem principal do livro de Raduan Nassar, escritor brasileiro recentemente agraciado com o Prêmio Camões, é a linguagem.
A força do vocabulário, milimetricamente escolhido e posicionado, faz dessa obra um daqueles sopros de originalidade da literatura. Não comece a leitura esperando um enredo mirabolante, do tipo que você precisa chegar à última página para unir todas as pontas e assimilar o sentido da história. Nassar significa suas ideias em cada palavra. Não há sequer um trecho supérfluo no livro. Talvez por isso ele não seja extenso – tem apenas 84 páginas. Seria impossível sustentar esse fôlego por muito mais.
A história é narrada por um homem recluso e com ares de “Narciso” – referência ao personagem da mitologia grega que definha admirando sua própria beleza no reflexo de um rio. Depois de uma noite de paixão, à mesa do café da manhã com sua amante, tudo parece seguir um caminho previsível, quando um fato aparentemente banal é o gatilho que coloca em cena outro personagem – a cólera:
… mas meus olhos de repente foram conduzidos, e essas coisas quando acontecem a gente nunca sabe bem qual o demônio e, apesar da neblina, eis que vejo: um rombo na minha cerca viva, ai de mim, amasso e queimo o dedo no cinzeiro, ela não entendendo me perguntou “o que foi?”, mas eu sem responder me joguei aos tropeções escada abaixo (o Bingo, já no pátio, me aguardava eletrizado), e ela atrás de mim quase gritando “mas o que foi?”, e a dona Mariana corrida da cozinha pelo estardalhaço, esbugalhando as lentes grossas, embatucando no alto da escada, pano e panelas da mão, mas eu nem via nada, deixei as duas para trás e desabalei feito louco, e assim que cheguei perto não me aguentei “malditas saúvas filhas da puta”, e pondo mais força tornei a gritar “malditas saúvas filhas da puta”, vendo uns bons palmos de cerca drasticamente rapelados, vendo uns bons palmos de chão forrados de pequenas folhas, é preciso ter sangue de chacareiro para saber o que é isso…
Como podem perceber, o ritmo da narrativa é intenso. Fica difícil escolher um trecho curto para reproduzir. Nassar quase não utiliza ponto final, as ideias são encadeadas sem pausa. Na sequência dessa cena, tem início a explosão de cólera do narrador, que se manifesta em uma discussão fervorosa com a amante. Questões políticas e existenciais afloram durante a briga. Ele a acusa de ser uma farsa, uma “jornalistinha de merda”, uma burguesa que finge se importar com as classes menos privilegiadas, mas que, na verdade, faz “da fome do povo o disfarce do próprio apetite”:
“…vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto, vá lá derramar a tua gota na exurrada de palavras; desperdice o papel do teu jornal, mas não meta a fuça nas folhas do meu ligustro…”
Por sua vez, a mulher o define como “fascista”, “Narciso! sempre remoto e frágil, rebento do anarquismo!”, “dogmático, caricato e debochado”, um homem das cavernas que se opõe à ordem por ter medo dela e que vive recluso, porque foi “enxotado pela consciência coletiva, que não tolera o fraco”.
Somos envolvidos pela troca de acusações e pelos ânimos inflamados. Tal qual ocorre em brigas em que a raiva domina, a certa altura, mal somos capazes de lembrar por que a discussão começou. Só não esquecemos totalmente, pois o estopim, a cerca viva destruída pelas saúvas, ressurge em alguns momentos, ora como uma metáfora do modo de vida antissocial do narrador – a cerca seria um símbolo da proteção que ele erguia em relação ao mundo que desprezava – ora como uma metáfora dos sentimentos enlouquecedores que o atingem. Neste trecho, ele descreve, aludindo às saúvas destruidoras da cerca, a cólera que tomou conta dos seus sentidos:
… estava era às voltas c’o imbróglio, co’as cólicas, co’as contorções terríveis duma virulenta congestão, co’as coisas fermentadas na panela do meu estômago, as coisas todas que existiam fora e minhas formigas pouco a pouco carregaram, e elas eram ótimas carregadeiras as filhas da puta, isso elas eram excelentes, e as malditas insetas me tinham entrado por tudo quanto era olheiro, pela vista, pelas orelhas, pelo buraco das orelhas especialmente!
Um aspecto interessante é que o narrador reproduz os diálogos e os pensamentos que antecedem os ataques que ele vocifera. Nassar dá vida não apenas a uma briga, mas também aos seus bastidores, ou seja, a confusão mental que toma conta do agressor. As palavras atropelam a razão, tudo de forma acelerada, exatamente como acontece quando somos dominados pela raiva. Ou melhor, pela cólera – um substantivo muito mais contundente, que não à toa foi a escolha do escritor. O livro de Nassar nos mostra, acima de tudo, a força das palavras:
… acreditava, piamente, que as palavras – impregnadas de valores – cada uma trazia, sim, no seu bojo, um pecado original (assim como atrás de cada gesto sempre se escondia uma paixão), me ocorrendo que nem a banheira do Pacífico teria água bastante pra lavar (e serenar) o vocabulário…
Provavelmente, existem outras dezenas de análises que cabem nessas quase 90 páginas (não subestimem a brevidade do texto). Os personagens são ricos e o final sugere boas teorias acerca do comportamento explosivo do narrador. Preferi focar no que considerei mais original na obra de Nassar – a maestria com que ele lida com o vocabulário. Talvez por isso minha segunda leitura da obra, em voz alta e contínua, tenha feito mais sentido. Pude ver, ouvir e sentir a força das palavras.
Mariane Domingos
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12 de dezembro de 2020 at 18:58
Conheci através do filme. Não conhecia o autor.
Ótimo!!! Como tudo que se propõe a ser verdadeiro.