Leitores anônimos

No metrô, em cafés, no parque ou até mesmo andando. Se há uma cena cotidiana que me inspira é a de pessoas lendo em lugares públicos. Vamos ser francos: não vivemos em um país que tem a cultura do livro, menos ainda em situações como essas, em que os smartphones – e suas redes sociais que tudo e nada conectam – surgem como a distração mais cômoda.

Momentos literários desse tipo são cada vez mais raros, por isso não meço esforços para aproveitá-los. Sou do tipo que faz peripécias para ampliar meu campo de visão e, assim, descobrir, sem denunciar minha curiosidade, qual livro o desconhecido ao meu lado está lendo. Vale até fingir dores nas costas e simular alongamentos para virar o pescoço em direção à capa misteriosa. Nem preciso dizer o quanto as leituras em tablets têm impossibilitado essa tarefa. O maior pecado dos e-books foi ter tirado da capa do livro sua condição de vitrine.

Não é sempre que o esforço da investigação é recompensado. Além do inconveniente dos tablets, há certos leitores que dificultam esse intercâmbio literário. Dobrar o livro, por exemplo, é prática que nunca entendi bem, porque não só atrapalha a curiosidade alheia, como também impede a passagem rápida à página seguinte e, principalmente, cria vincos pavorosos!

Outro obstáculo, por sorte cada vez menos comum, são as capas protetoras. Usá-las pode ter justificativas bastante plausíveis, entre elas proteger a integridade do livro ou a imagem do leitor (nunca se sabe o gosto literário duvidoso que está por baixo da proteção), mas ainda assim não é nada gentil com os curiosos de plantão.

Como sou uma observadora convicta de leituras alheias, levar um livro a público é para mim quase um evento. O processo de escolha do exemplar que irá habitar a minha bolsa é longo. Malas de viagem, então, merecem um capítulo à parte. Me sinto como Tereza, personagem de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera:

De fato, contra o mundo de grosseria que a cercava tinha uma só arma: os livros que tomava emprestado na biblioteca municipal; (…) tinham também para ela um sentido como objetos: gostava de passear na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam das outras.

Procuro nunca sair com livros muito conhecidos. Me sinto realizada quando leituras alheias me apresentam bons autores. Quero que aqueles que observam minhas escolhas literárias tenham a mesma satisfação. Então, levo para passear livros que estimulem a curiosidade das pessoas. Nomes inusitados, capas chamativas e títulos em letras garrafais. É verdade que, muitas vezes, essa ousadia me rende olhares desconfiados ou confusos.

Lembro-me de quando estava lendo História do Cabelo de Alan Pauls. Não posso dizer com certeza, porque nunca verbalizaram tal curiosidade para mim, mas, mais de uma vez, senti que as pessoas me olhavam e imaginavam que eu era uma profissional do ramo capilar que estava lendo um tratado, de cunho fashion ou biológico, sobre o cabelo. Essa ideia sempre me fazia rir por dentro. Tomara que algum desavisado tenha sido fisgado, porque Pauls definitivamente vale a pena!

Tão bom quanto conhecer novos autores pelas leituras públicas é encontrar desconhecidos com livros que você ama nas mãos. Certa vez, pouco tempo depois de eu ter concluído a leitura de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (rápido parênteses: se você nos acompanha aqui no blog já deve estar cansado de ouvir sobre esse título, mas Wallace era gênio e não nos deixa saída além da repetição), enfim, nessa ocasião, eu seguia apressada pela avenida Faria Lima, quando identifiquei um homem sentado à mesa de um pequeno café lendo esse livro. Saí do meu estado de vida moderna agitada, parei um instante e virei a cabeça para confirmar se a cena era verdadeira. Não fosse minha personalidade tímida, certamente teria ido lá e começado uma conversa animada sobre o quanto aquela leitura era incrível e como todo mundo deveria conhecer o Wallace.

Proporcionar boas e inesperadas conversas ou reflexões é uma das grandes vantagens das leituras em público. Tive a ideia de escrever este texto justamente porque, nesta semana, duas pessoas me contaram histórias nas quais os livros deram um empurrãozinho para novas experiências. Em uma delas, a leitura de Diga o Nome Dela (por sinal, indicação aqui do blog) deu início a uma boa conversa no ônibus. No outro relato, uma estatueta de Quixote e um exemplar de Grande Sertão: Veredas sobre a mesa do escritório transformaram um encontro que seria estritamente profissional no início de uma amizade.

Em tempos em que as pessoas parecem ter sido engolidas pelas telas de seus celulares e evitam qualquer tipo de convivência em espaços públicos, é bom lembrar as infinitas possibilidades que um livro pode trazer. A continuação do trecho de Milan Kundera que citei acima vem a calhar:

A comparação entre o livro e a elegante bengala não é de todo exata. A bengala era o sinal distintivo do dândi, mas também fazia dele um personagem moderno e na moda. O livro distinguia Tereza das outras moças, mas fazia dela um ser fora de moda. É claro que ela era ainda muito jovem para poder captar o que havia de ultrapassado em sua pessoa. Achava idiotas os adolescentes que passavam por ela com rádios barulhentos. Não percebia que eram modernos.

Os rádios foram substituídos por novos aparelhos igualmente barulhentos. Assim como Tereza, sou ultrapassada. Os livros serão sempre minha bengala. Mais do que me distinguir, quero exibi-los para trocar experiências, mesmo que em silêncio, com outros “fora de moda” por aí.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
Mariane Domingos

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2 Comentários

  1. Excelente iniciativa. Sair com livros desconhecidos e poder de certa forma divulgar esse material, realmente a leitura é muito importante, acredito que a sociedade hoje não está mais interessada nisso. Tudo tem que ser muito rápido, ler é ultrapassado. Claro, que para mim e para você nunca vai ser. Belo texto. Continue nessa jornada.

    Abraço!

    • Mariane Domingos

      16 de junho de 2016 at 11:18

      Obrigada pelo comentário e pelo incentivo, Rodrigo! Bom saber que há mais “ultrapassados” por aí. Em tempos em que qualquer atividade que exige concentração e tempo é vista como desperdício, ler livros é mesmo para os fortes! Abraço!

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