A mudança de narrador, em Laços, de Domenico Starnone (Ed. Todavia), aprofundou o perfil psicológico dos personagens, enquanto fazemos, ao lado de Aldo e Vanda, um inventário de um apartamento destroçado. A proximidade dessa narrativa com Dias de Abandono, de Elena Ferrante, também fica mais visível a cada página. Está gostando da nona edição do Clube do Livro do Achados & Lidos? Conte para gente o que te marcou neste livro até aqui! Para a próxima semana, vamos até a página 80.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Laços está dividido em três livros: três pontos de vista sobre um passado comum. Na primeira parte, acompanhamos anos de amargura de Vanda, por meio de cartas dirigidas a Aldo, nas quais ela relata a dor do abandono, as dificuldades na criação dos filhos, as angústias de uma vida solitária.
No segundo livro, o narrador é Aldo e o passado ficou para trás. Aldo e Vanda estão juntos novamente e apenas alguns lampejos na narrativa sugerem o passado de mágoas da primeira parte.
O trecho lido é um ensaio interessante sobre o perfil psicológico do casal. Depois de 50 anos de casamento, há pouco espaço para surpresas, para uma individualidade inesperada: a personalidade de cada um está tão enraizada no outro que o menor sobressalto parece poder ser antecipado. Quando Aldo acaba enganado na porta de casa por uma entregadora, Vanda, mesmo na cozinha, logo questiona:
– Algum problema? – perguntou minha mulher, que percebe se eu mudo de humor mesmo quando está distraída.
Essas pequenas trapaças, aliás, são uma rotina na vida do personagem, para irritação da esposa, que carrega grande preocupação com dinheiro (uma preocupação sobre a qual Aldo pouco reflete e considera uma mania, sem resgatar os anos em que ela precisou se mudar para conseguir pagar o aluguel, quando ficou só com as crianças).
Se Aldo não é capaz de fazer essas ligações, nós leitores vamos encaixando as peças dos silêncios e reações de cada um. Enquanto na primeira parte, reina o silêncio de Aldo diante de uma Vanda verborrágica, nesse segundo trecho, os dois personagens mergulham no não-dito como uma forma de enterrar o passado. Sutilmente, memórias indesejáveis vão sendo silenciadas, como neste diálogo em que Aldo relembra um episódio e se confunde achando que Vanda estava com ele, quando provavelmente sua companheira era a amante. A esposa é categórica ao interromper o assunto:
-Eu não estava no táxi com você.
No mesmo instante senti o rubor que me subia do peito queimando o rosto e tentei contê-lo.
-Claro que estava.
-Chega.
-É você que não se lembra.
-Já disse chega.
Essa dinâmica em que o leitor vai preenchendo os significados dos silêncios parece se acelerar quando os dois, no retorno de uma semana agradável de férias na praia, encontram o apartamento inteiramente devassado, sem que aparentemente lhes tenham roubado nada.
Eu me deixei estar. Em geral, diante de circunstâncias de difícil resolução, diminuo o ritmo e tento evitar movimentos em falso. Já ela, depois de um instante de perplexidade, mergulha de cabeça no assombro e luta com todas as forças.
Se nada de material foi efetivamente levado no assalto, as perdas imateriais são grandes. As memórias de uma vida inteira foram destroçadas e se espalham por todos os lados do aparamento, com o potencial de desenterrar velhas verdades. Seguindo o que Jhumpa Lahiri pontua em seu prefácio, Starnone alcança o imaterial a partir do material. É evidente como a minúcia descritiva dos objetos é capaz de trazer à tona lembranças e sentimentos. Tudo aquilo que o casal vinha sutilmente varrendo para debaixo do tapete, em seus silêncios forçados, ameaçam reaparecer no caos do apartamento destruído.
Ao mesmo tempo em que Starnone compõem os diferentes prismas desta história, encaixando as peças no quebra-cabeças, fica também mais visível a proximidade desse relato com Dias de Abandono, de Elena Ferrante (editado pela Biblioteca Azul). Não é que os dois livros sejam apenas espelhos de um mesmo fato (uma traição e o posterior abandono da esposa por uma mulher mais nova): eles são obviamente complementares.
Todo o contexto é o mesmo. Em ambos os livros, o casal tem dois filhos, sendo que o mais velho é o menino. Nos dois relatos, o casal é originalmente de Nápoles, mas o homem consegue, depois da crise conjugal, uma posição em Roma. A mágoa da mulher é despejada em inúmeras cartas. No começo da separação, Aldo acusa Vanda de tentar matá-lo, depois de aceitar uma refeição e quase engolir cacos de vidro de uma louça que ela havia quebrado enquanto cozinhava. E assim segue a trilha de acontecimentos que faz com que seja, de fato, bastante improvável que as duas obras não tenham nenhuma conexão.
Como escrevemos aqui no texto de introdução à Laços, Domenico Starnone é casado com Anita Raja, tradutora italiana que um jornalista apontou como verdadeira identidade de Elena Ferrante. Se é verdade ou não, não conseguimos afirmar com certeza. Mas definitivamente são leituras paralelas e complementares.
Também encontrou coincidências entre as duas obras? O que achou dessa fase madura dos personagens? E o apego de Vanda ao apartamento, o que você acha que significa? Conte aqui nos comentários pra gente!
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