Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada. Nunca soneguei impostos nem trapaceei no baralho. Nunca entrei no cinema sem pagar nem fiquei com o troco a mais dado por um caixa de farmácia indiferente às regras do mercantilismo e às expectativas do salário mínimo.
As primeiras frases de O Vendido, de Paul Beatty, são um aperitivo do humor sarcástico e um tanto perturbador que marca praticamente todas as páginas desse romance, ganhador do Man Booker Prize no ano passado. Narrado em primeira pessoa por Eu, um garoto negro de um bairro pobre na região da Califórnia, o livro começa com seu julgamento perante a Suprema Corte dos Estados Unidos.
Os crimes de que Eu é acusado são verdadeiramente hediondos: escravizar um funcionário e promover a segregação racial na cidade de Dickens. A realidade, porém, é que Hominy, o escravo, não trabalha nem 15 minutos por dia e fez de tudo para que Eu o aceitasse em sua servidão, argumentando até mesmo que “a verdadeira liberdade é ter o direito de ser escravo”.
A segregação promovida por Eu em Dickens também foi um empreendimento de construção social, como uma espécie de alavanca para promoção do desenvolvimento local. Depois de pregar num ônibus um aviso que reservava lugares para grávidas, idosos e brancos e perceber que os passageiros passaram a se comportar melhor sob a ameaça da discriminação, Eu decide envolver um terreno da região em tapumes alardeando a iminente construção de uma escola só para brancos no local.
O personagem, porém, é acometido por um “bloqueio de racismo”, até que ele tem uma espécie de epifania, parado em pé no pedaço de terreno em que enterrou seu pai, olhando para as fileiras de árvores frutíferas, pés de alface e outras hortaliças. É nesse momento que ele decide qual será o propósito da segregação em Dickens:
Sou um fazendeiro e segregamos num esforço para dar a cada árvore, a cada planta, a cada pobre mexicano, a cada pobre crioulo uma chance de acesso igual ao sol e à água; a gente quer ter certeza que todo organismo vivo vai ter espaço para respirar.
O pai do personagem principal é a força que move essas experimentações. Teórico sobre as relações sociais, o pai de Eu tinha formas bastante próprias de testar suas teorias, com esquemas inusitados que muitas vezes envolviam seu filho. Em um deles, ele decidiu colocar o menino numa esquina, com bolsos recheados de notas de dólares e aparelhos eletrônicos caros em seus braços. Com o filho a postos, começou a golpeá-lo e chamá-lo de ladrão, só para descobrir (ou melhor, confirmar) que a multidão de transeuntes não defendeu o menino. Pelo contrário, uma horda se juntou para espancar o garoto.
É quase impossível não rir dos experimentos do pai, o que coloca os leitores em situação delicada. Por que estamos rindo disso? Deveríamos rir dessa situação?
Beatty, porém, não está nem aí para o politicamente correto. Ele abusa de estereótipos, de piadas racistas que deixam o leitor no limiar entre gargalhadas e um profundo desconforto.É assim quando ele relembra os papéis de Hominy, um ex-Batutinha, no cinema (todos secundários e de suporte) e quando fala de sua experiência na faculdade, quando era o representante da “diversidade”, por exemplo.
É uma merda isso, enfrentar um julgamento em que posso ser condenado à morte e pela primeira vez na vida não me sentir culpado. Aquela culpa onipresente que é tão negra quanto torta de maçã em restaurante fast-food e basquete na prisão finalmente desapareceu, e você se sente quase branco ao livrar do fardo da vergonha racial que leva um calouro quatro-olhos a ter medo de comer frango frito na frente dos outros.
Recheado de referências culturais e de uma linguagem bastante informal, nem sempre é fácil acompanhar a prosa de Beatty, que esteve no Brasil para o lançamento de O Vendido, com passagem pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Embora o debate com o autor jamaicano Marlon James não tenha fluído e Beatty tenha sido evasivo em várias das perguntas, ele foi bastante direto ao comentar a autoria do romance.
“Muitas vezes me perguntam se um autor não negro poderia ter escrito meu livro. Cara, gosto de acreditar que apenas eu poderia ter escrito o meu livro.”
A pergunta, porém, não deixa de ter algum sentido. A linguagem, a forma, o conteúdo aos quais Beatty recorre ao longo deste livro são, muitas vezes, chocantes pela realidade cáustica que ele descreve com humor ácido. Dificilmente um autor que não tenha lidado com racismo como parte de sua identidade seria capaz de fazer piada com aspectos tão cruéis e aviltantes da forma como nos tratamos uns aos outros por questões de raça, gênero, cor ou religião.
Em dado momento do livro, Beatty afirma que a “beleza” da piada racista é que ela é eterna. É uma vergonha para todos nós que elas sejam também universais. O Vendido trata das relações raciais americanas, mas é um livro com alcance global. Nem sempre é engraçado estar na pele dos outros.
Tainara Machado
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22 de setembro de 2017 at 22:52
Excelente resenha. Obrigado.
1 de outubro de 2017 at 16:32
Que bom que gostou, Marcos!! Obrigada!