Começo esse post fazendo uma confissão: ao contrário das pessoas que se mostraram altamente produtivas durante a quarentena, eu tive grande dificuldade de concentração nos meses confinada em casa. Como quase todo mundo, fui consumida pela ansiedade diante de uma doença desconhecida e do modo como ela foi e continuar a ser enfrentada pelas autoridades, em um desgoverno que parece não esbarrar em nenhum limite. Soma-se a isso algumas outras dificuldades pessoais (afinal, 2020 não foi fácil pra ninguém) e o fato de uqe o ano passado foi provavelmente o período em que mais trabalhei na vida e a lista de leituras ao fim do ano deixou um pouco a desejar: foram 21 livros (segundo meu acompanhamento no Goodreads. Me siga por lá!), nenhum clássico, poucos calhamaços e a promessa de finalmente acabar Grande Sertão: Veredas empurrada para 2021.
Isso não quer dizer que não tenha esbarrado com algumas grandes leituras no ano passado. Vamos à lista!
Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior: A história deste livro é um pouco insólita. Antes mesmo de ser editado no Brasil, o romance ganhou o Premio Leya, em Portugal, tendo sido escrito por conta própria pelo autor, que ainda não contava com uma editora. Depois, quem se interessou pela obra aqui foi a Todavia. Eu acabei conhecendo o livro e o autor por uma indicação de uma colega que participa de um clube de leitura do qual faço parte. Depois disso, ele virou uma espécie de febre – quase um culto, presente nas conversas e indicações de muitos amigos e conhecidos virtuais devoradores de novidades literárias. Acabou por levar também o Prêmio Jabuti de melhor Romance Literário e o Prêmio Oceanos de Literatura.
Fiquei tão fissurada por autor e obra que participei de um curso online dado por Itamar, sobre antropologia e literatura. Ao longo das aulas, o autor contou um pouco sobre sua formação, a inspiração para alguns personagens e como ele encontrou as vozes tão potentes das duas personagens principais do livro: duas irmãs no sertão da Bahia, ligadas entre si de forma indelével por um acidente na infância e assombradas por um passado escravagista do qual estamos longe de superar. Em entrevista ao El País, em dezembro, ele também falou um pouco sobre essa história.
A leitura me fez pensar muito sobre nossa ligação com a terra e nosso senso de comunidade (foi até inspiração para um post sobre o tema, que você pode ler aqui), sobre formação e história do Brasil e sobre racismo. O livro ainda é muito bem escrito, com uma das aberturas mais surpreendentes que eu já encontrei.
Como comentou outro amigo participante do mesmo clube do livro, é um romance que já nasceu clássico, que deveria ser leitura obrigatória nas escolas e no vestibular. Quem não foi arrebatado por Torto Arado em 2020, aproveite a chance.
A Peste, de Albert Camus: outra leitura bastante popular em 2020, a obra do franco-argelino retrata uma cidade administrada pela França na Argélia, Orã, que se vê infestada por uma peste. Centrado no enfrentamento da epidemia liderado pela dr. Rieux, o livro foi refúgio de muitos que procuravam refletir sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus e colocá-la em contexto. Uma frase, logo no início do livro, me marcou:
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós”.
Li A Peste em maio, quando as reflexões sobre “novo normal”, sobre o que aprenderíamos após o período de distanciamento social e mudanças drásticas no nosso dia a dia, estavam em seu auge. Havia uma onda que acreditava na capacidade de regeneração do ser humano, com um novo entendimento sobre nossa relação com o entorno, seja o ambiente degradado, seja a falta de compaixão que domina a convivência em grandes cidades. No início deste ano, como já indicava a célebre obra de Camus, a conversa já não tem mais quase nada daquele senso de generosidade que parecia ter dominado os primeiros dias da pandemia.
“Enquanto a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, tornava mais acentuado no coração dos homens o sentimento de injustiça.”
À Espera dos Bárbaros, de J. M. Coetzee: Um vilarejo pacato nas franjas de um império nunca nomeado é o pano de fundo para este romance do sul-africano J. M. Coetzee. Escrito há quase quarenta anos, o livro já dá pistas dos temas que seriam recorrentes na obra do autor, em especial a inesgotável profusão de conflitos morais dos quais padece a humanidade.
Neste livro, o dilema vai ficando cada vez mais óbvio à medida que avança a trama. Nesta cidade sem nome, o magistrado local precisa prestar contas para a capital sobre como está lidando com uma iminente invasão bárbara. Se antes suas preocupações eram essencialmente hedonísticas e esse assunto pouco ocupava seus pensamentos, a chegada do coronel Joll e de seu exército muda tudo.
Não é que o narrador seja exatamente um arquétipo do paladino das virtudes e da moral, mas aos poucos as práticas de combate, aprisionamento e tortura do coronel e de sua claque mudam drasticamente o funcionamento do vilarejo – e também a postura do magistrado. Nesta relação, é impossível não nos perguntar, afinal, quem são os bárbaros? Os que vivem além das fronteiras ou nós?
Segredos, de Domenico Starnone: Os romances do italiano Domenico Starnone são, ao mesmo tempo, intimistas e gerais. Seus livros contam com poucos personagens, um cenário que na maior parte das vezes está restrito às quatro paredes de um cômodo ou de uma casa e a ação é mais psicológica do que real. Ainda assim, ficamos fissurados em sua narrativa e forte compreensão dos dramas internos que nos movem. Se em Laços (que lemos no Clube do Livro) a tensão do romance estava em um casamento fracassado e, em Assombrações, em um conflito geracional, em Segredos, como o próprio título já diz, é uma confissão a mola mestra do livro.
Ao concordar trocar com uma ex-namorada e ex-aluna seu segredo mais obscuro, Pietro, um acadêmico em vias de construir uma reputada carreira como professor e escritor, acaba moldando sua vida inteira pelo não-dito. Em todas as suas decisões e encruzilhadas, essa confissão estará lá pairando, pronto para assombrá-lo e impor limites a suas ações e ambições.
Sem nunca revelar o que de fato é tão inquietante sobre Pietro, Starnone nos leva por um passeio sobre a construção de nossa autoimagem e em nossas crenças limitantes. Embora ainda considere Laços e Assombrações mais complexos, Starnone continua no meu panteão de achados literários mais interessantes dos últimos tempos. E, para quem leu a obra, que tal um palpite sobre qual é o segredo que Pietro julga tão revelador?
Revolução das Plantas, de Stefano Mancuso: Este não é um livro de ficção como os que costumamos postar aqui no Achados e Lidos. É, na verdade, uma obra sobre ciência e natureza, fruto da extensa pesquisa do neurobiólogo Stefano Macuso, que estuda como o reino vegetal se comunica e se organiza. À primeira vista, pode parecer um tema complicado, mas Macuso é excelente contador de histórias e sabe mostrar, a partir de exemplos, as complexas teorias que são desenvolvidas em seus estudos e laboratórios.
Como toda boa literatura, Revolução das Plantas também contribui muito para ampliar nosso olhar e nos colocar no lugar do outro. Dessa vez, no das plantas. Desde crianças, aprendemos na escola que árvores são imóveis, desprovidas de inteligência. Macuso, no entanto, mostra que na verdade as plantas têm uma capacidade de comunicação muito superior à que imaginamos, formando redes subterrâneas, tomando decisões em conjunto, nos ensinando que há outras formas de entender – e colaborar com o mundo.
Para mim, foi uma leitura simbólica em 2020, um ano de tanta devastação ambiental e de confronto à ciência. As lições propostas por Macuso mostram que ainda há um caminho possível de cooperação entre plantas e animais, mas precisamos saber olhar para os lugares certos.
Tainara Machado
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