A canadense Alice Munro é a rainha da narrativa breve. Não à toa, ela foi a primeira escritora dedicada exclusivamente a esse gênero a conquistar o Prêmio Nobel de Literatura, em 2013. A precisão de sua linguagem e a construção de ótimos personagens, em sua maioria figuras femininas, garantem aos seus contos a profundidade de grandes romances.
Amiga de Juventude (Globo Livros – Biblioteca Azul, 303 páginas) reúne dez narrativas publicadas em 1990. Nessas breves histórias, ela dá vida a mulheres cujas personalidades, em algum momento, entram em choque com seu meio social, desencadeando instantes de liberdade tão fugazes quanto decisivos
O destino dessas personagens é nebuloso, sempre nas entrelinhas, e é justamente essa condição que torna as histórias ainda mais envolventes. O leitor se deixa levar pela busca, às vezes inconsciente, empreendida por essas mulheres, e acaba em tramas marcadas por paixão, violência ou fantasmas da memória.
Munro sabe trabalhar muito bem a tensão do elemento surpresa. Embora sua escrita tenha um ritmo sereno, quem já conhece a obra da autora não se deixa enganar pela calmaria e logo enxerga a reviravolta à espreita.
Isso acontece porque Munro sabe, como poucos, dissecar seus personagens. No começo dos contos, ela se mantém a uma distância segura, mas, ao final, já estão todos mergulhados em intimidades escancaradas e tramas intrincadas.
Bárbara, do conto Laranjas e Maçãs, é um ótimo exemplo desse estilo de narrativa ascendente de Munro. À primeira vista, ela parece uma pessoa comum, com uma vida comum, que se deixa levar por padrões impostos pelo seu meio social. De repente, o leitor é surpreendido por uma descrição genial como esta, que mostra uma mulher longe do perfil passivo:
Mas quando as pessoas descobrem o quanto ela já leu, e o fato de ela não ter feito faculdade, elas às vezes sugerem que ela devia fazer isso, obter um diploma.
(…) A lista de coisas que Bárbara não quer fazer é maior que o seu braço. Parece que ela só quer fazer o que já faz – ler, sair para passear, comer e beber com prazer, tolerar alguma companhia. E a menos que as pessoas saibam valorizar isso nela – suas ausências, sua indolência robusta (ela tem um ar indolente mesmo quando cozinha um excelente jantar para trinta pessoas) –, elas logo deixam de fazer parte da companhia que ela acha tolerável.
Na coletânea Amiga de Juventude, fica claro também o olhar crítico de Munro sobre a condição feminina na sociedade. São várias as críticas, às vezes sutis, às vezes diretas, ao papel reservado à mulher:
Ela disse ao médico que sentia os globos oculares secos feito vidro quente, e que suas juntas doíam. Ele disse: “Não leia muito, não estude. É melhor a senhorita se exercitar, usar o trabalho de casa pra gastar energia, pra dar aquele cansaço bom”. Ele crê que os achaques dela acabariam se ela se casasse. Ele crê nisso embora a maior parte dos remédios para nervos seja usada por mulheres casadas.
Outro ponto característico de Munro é usar a memória como fio condutor de suas histórias. Seus contos são verdadeiros quebra-cabeças, em que nem sempre se chega a um desenho final, completo. Mas isso pouco importa, porque a grande beleza da sua escrita está em redescobrir as peças que o tempo apagou:
As pessoas são curiosas. Algumas são. Elas são levadas a descobrir coisas, mesmo coisas triviais. Elas juntarão os fatos. Você vê essas pessoas andando por aí com blocos de notas, raspando a terra de lápides, lendo microfilmes, na esperança de ver esse pequeno gotejar de tempo, de fazer uma conexão, de resgatar uma coisa no entulho.
Os contos de Munro fazem exatamente esse processo: jogam luz sobre o “pequeno gotejar de tempo” e resgatam histórias do entulho. Mas não são quaisquer histórias. São histórias simbólicas que, por mais que estejam geograficamente e temporalmente distantes, guardam algum tipo de conexão com a realidade do leitor.
Mariane Domingos
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