[Resenha] O Melhor Tempo é o Presente

Uma união proibida: Jabulile Gumede é negra, Steven Reed é branco. Na África do Sul segregada pelo apartheid, essa relação só podia ser vivida na clandestinidade. É a partir dessa tensão que se desenrola O Melhor Tempo é o Presente (Companhia das Letras, 499 páginas), da ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura Nadine Gordimer.

Jabulile e Steven vêm de contextos diferentes, mas encontram um destino comum no sonho da liberdade para todos. Jabulile é filha do diretor da escola local e pastor da igreja metodista da província de KwaZulu, uma região dominada pelas mineradoras. Seu pai lutou por sua educação e apostou na continuidade dos seus estudos mesmo quando isso envolveu a mudança de país, para a Suazilândia, diferentemente do contexto da época, em que a prioridade era dada para a educação dos filhos homens.

Steve, filho de mãe judia e pai católico não-praticante, cresceu em uma família de classe média, cercado de todos os privilégios que ser branco garantia na África do Sul do apartheid, como o acesso a escolas particulares e aulas de latim. Na luta pela liberdade, os dois se conheceram, ainda na Suazilândia. Um romance considerado ilegal pela lei de então. Até a Constituição de 1994.

Houve uma era paleozoica, uma era mesozoica, uma era cenozoica.

Era como o fim de uma era. Sem dúvida, nada menos do que uma nova era em que a lei não se baseia na pigmentação, qualquer pessoa pode morar e se deslocar e trabalhar em qualquer parte de um país que é comum a todos.

Somos, inevitavelmente, moldados pelo nosso tempo, pela história que nos cerca. Em determinados momentos, ela define quem podemos amar, e como. Em outros, a liberdade conquistada traz consigo também escolhas e reflexões. Neste ótimo romance, o sonho por mais oportunidades para todos é substituído pela decepção de uma geração que deixou a luta pelo fim do apartheid e encontrou a corrupção e a pobreza como novas barreiras a serem vencidas.

Há ainda o peso das contradições impostas à classe média, com sua luta por equidade, ao mesmo tempo que passa a poder desfrutar de certos privilégios advindos da ascensão social. Com a Constituição de 1994 e a democracia, os filhos de Jabulile e Steven poderão crescer sob uma democracia. Poderão decidir onde morar, em qual escola eles vão estudar, quais oportunidades de emprego vão ou não aceitar. Vão poder abrir mão da matrícula tão sonhada em uma escola pública porque a privada, pela qual podem pagar, oferece uma educação e oportunidades muito mais consistentes. Decidirão não ter uma empregada, mas não escaparão de trazer para casa Wethu, tratada como parente, mas encarregada dos serviços domésticos.

Isso não significa renunciar a um histórico de lutas, seja nas causas defendidas por Jabulile como advogada, seja na luta por uma educação básica de mais qualidade na universidade em que Steven é professor. Em alguns casos, é possível conciliar a realidade com o sonho.

Em outros, não. Em um romance com forte cunho histórico, os personagens debatem eleições presidenciais e as transições de poder em uma democracia conflagrada pela corrupaão. Alguns heróis do movimento contra o apartheid, como Jacob Zuma, cedem fácil ao apelo da corrupção e do enriquecimento ilícito ao chegarem no poder, uma chaga que também assola outros países africanos (e latino-americanos). A igualdade para todos é substituída pela ascensão de uma pequena elite e pelo aprofundamento da desigualdade. A pobreza passa a ser uma marca de um país segregado por décadas.

Assim, Steve estava percebendo isso na pele: a diferença de classe poderia ocupar o lugar da diferença de cor no que vai ser feito agora com a liberdade.

A deterioração do ambiente político e econômico do país abala os ânimos do casal e de seus camaradas, que continuam a discutir o futuro do país, ainda que agora nos subúrbio de Joanesburgo, e não mais em meio ao mato, como fugitivos.

Em um romance que é também uma verdadeira aula de história, Gordimer relata a difícil saga de um país para construir seu futuro, em meio a conflitos sociais, de identidade e a constante luta por poder que tem caracterizado as jovens democracias na África e na América Latina. Jabulile e Steven simbolizam o fim da segregação, a esperança e, no final, o desencanto com o que foi feito a partir de tantos sonhos. Até o ponto em que o único caminho possível é desistir. Quem pode julgá-los?

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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