Sepulcros de Vaqueros (Alfaguara, 196 páginas, ainda sem tradução para o português) é um deleite para os leitores iniciados na obra do chileno Roberto Bolaño. Com várias referências a outras produções do escritor, as três histórias que compõem essa publicação póstuma – Patria, Sepulcros de Vaqueros e Comedia del Horror de Francia – datam dos anos 90 e 2000.
Todas trazem temas caros à escrita de Bolaño – a violência, a ditadura chilena, a América Latina, a juventude, a literatura e a ficção científica. A resistência aos finais definitivos, característica marcante em seus romances, ganha ainda mais força nessas narrativas curtas.
Por serem textos que, provavelmente, ficaram sem conclusão ou foram aprimorados posteriormente em obras de maior fôlego, nas três histórias dessa coletânea, é possível assistir aos bastidores da escrita de um grande autor. Nessas narrativas, embora não se encontre o crème de la crème de sua literatura, desfruta-se um Bolaño mais livre e não menos genial.
Em Patria, à fuga de um jovem casal de Santiago, no fatídico 11 de setembro em que o golpe militar derrubou o governo de Salvador Allende, misturam-se as lembranças de um boxeador e o monólogo de um personagem sem nome sobre o poeta Juan Cherniakovski. Memórias soltas, que não obedecem a uma ordem cronológica, tampouco centram-se em um único indivíduo ou tema, são típicas da obra de Bolaño, que também não hesita em adicionar suas próprias experiências às trajetórias de seus personagens. Vale lembrar que o retorno ao Chile em 1973 para apoiar o governo de Allende foi um fato marcante da vida de Bolaño e se revelou uma fonte inesgotável para sua literatura.
A radio informava que em Santiago perpetrava-se um golpe militar.
(…) Recordo que em meio à debandada alguém gritou que eu me calasse, só então me dei conta de que seguia recitando. Recordo insultos, ameaças, exclamações de incredulidade, rostos que passavam do heroísmo mais sublime ao espanto, todo revolto e inacabado, enquanto eu gaguejava emaranhado em um verso e olhava para todos os cantos, o último a entender o que pairava sobre a República.
Em Sepulcros de Vaqueros, essa relação entre criador e criatura é ainda mais clara. A narrativa traz o famoso “detetive selvagem” Arturo Belano, que aparece em várias obras de Bolaño e é uma espécie de alter ego do chileno. A história traz lembranças da adolescência e juventude de Belano, primeiro em sua viagem do Chile ao México e depois em seu retorno à terra natal para “fazer a revolução”:
O que quer fazer então?, disse meu pai. A revolução americana, claro, eu disse. Que revolução americana?, disse ele. Minha mãe, até então em silêncio, disse Deus meu. Depois disse-lhes que eu iria embora para o Chile. A revolução chilena?, disse meu pai. Balancei a cabeça afirmativamente. Mas se você é mexicano, disse meu pai. Não, sou chileno, disse, mas isso é o de menos, todos nós, latino-americanos, deveríamos ir ao Chile apoiar a revolução.
Enquanto esses dois primeiros contos se conectam de diversas formas a outros títulos de Bolaño, o último texto da coletânea, escrito entre 2002 e 2003, ano da morte de Bolaño, é o único que não foi reaproveitado pelo autor e deixa a sensação de ser o primeiro capítulo de um romance não escrito. A narrativa se inicia com o relato de um eclipse e termina com uma improvável conversa telefônica, em uma bela mistura de acaso e destino.
Sepulcros de Vaqueros é um verdadeiro caldeirão de ideias e experimentos que desvela um pouco do árduo trabalho por trás das páginas de um romance. É uma amostra da genialidade de um escritor que tem a mesma desenvoltura no rascunho e no texto definitivo, nas histórias curtas e nas narrativas longa.
Para alegria dos seus leitores, Bolaño foi um escritor prolífico e é provável que venham mais obras inéditas por aí. Como ele bem escreveu no conto Patria, em uma frase que mais parece um prenúncio do que se tornaria sua literatura:
A vida dá muitas voltas, senhor Belano, a aventura não termina nunca…
ps.: quem não quiser esperar a tradução, pode se arriscar sem medo no texto em espanhol! Não sou fluente no idioma e tive uma leitura bastante tranquila. 🙂
Editora Alfaguara
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Mariane Domingos
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