A realidade árida da savana sul-africana dá o tom do primeiro volume da trilogia de ficção autobiográfica de J. M. Coetzee, um dos maiores escritores contemporâneos. Em Infância – Cenas da Vida na Província (Companhia de Bolso, 150 páginas), Coetzee relata, com a secura que lhe é habitual, seus anos de formação, em busca de uma identidade que não parece estar em lugar nenhum.
A casa em Worcester, para onde mudaram por causa do pai, que tem dificuldade em se fixar em um emprego, é simples, idêntica a todas as outras. O garoto não consegue se habituar ao local, à brutalidade do entorno.
A infância, segundo a Enciclopédia das Crianças, é uma época de felicidade inocente, que se vive nas campinas entre flores e coelhos, ou junto à lareira absorto num livro de contos. É uma visão da infância totalmente alheia a ele. Nada do que vive em Worcester, em casa ou na escola, o faz pensar que a infância seja mais que uma fase de engolir a seco e suportar.
Há no narrador uma sensação de incômodo por vestir a própria pele. Por diversas vezes, ele se relembra que não é “normal”: uma culpa que atribui à família, na qual o hábito de espancar os filhos, por exemplo, se encontra ausente. Ou na qual a mãe, a mulher da casa, é a figura de autoridade, ao contrário dos outros lares, em que é o pai que se sobrepõe.
Eles também não têm religião, outro problema para o narrador. Em certo momento, instado a escolher, o narrador se torna católico, menos por convicção religiosa, mais porque lhe pareceu a opção conveniente quando a diretora lhe apresentou as possibilidades: católico, cristão ou judeu.
Ao se declarar católico romano, passa a guardar mais um segredo que lhe aflige, por medo de ser descoberto em casa ou no colégio. O menino, durante a infância, parece sempre oscilar nesse pêndulo, sem saber ao certo a que se agarrar: apesar do sobrenome africânder, os pais falam inglês em casa; não vem de família católica, mas precisa definir uma religião no colégio, e agora mente nas duas frentes; é dos poucos meninos que usa sapatos todos os dias, e por isso não é considerado normal. Essa identidade indefinida o atormenta, faz dele um garoto solitário, que logo recorre aos livros para habitar outras paisagens.
Em um ambiente em que as relações são dominadas pela violência, a abundância do amor materno também lhe incomoda. O autor desenha uma relação classicamente edipiana, na qual a figura materna é central em sua vida, mas ele a renega, lhe privando de qualquer vestígio de liberdade ou mesmo de afeto.
Ele não quer que ela vá. Não quer que tenha desejos próprios. Quer que esteja sempre em casa, esperando que ele volte. Nem sempre se alia ao pai contra ela: está muito mais inclinado a apoiar a mãe contra o pai. Mas nesse caso fica ao lado dos homens.
Em Infância, não há espaço para condescendência ou brincadeiras infantis. O que se vê ali é um retrato preciso, em linguagem seca, da formação da personalidade de Coetzee (difícil não lembrar de Os Fatos, a biografia também ficcionalizada de Philip Roth já resenhada pelo blog, na qual o autor busca esmagar seus próprios argumentos de defesa por meio de seus personagens).
Embora assuma a voz de um garoto de 10 anos, a narrativa de Coetzee jamais é infantilizada. Pelo contrário, o autor se mostra um observador mordaz de seu entorno, da velhice, do amor e especialmente das relações sociais em uma África do Sul dívida por estritas noções de classe.
Mais uma vez, no entanto, o menino não sabe exatamente onde se encaixa. Na gradação imposta entre ingleses, afrincânderes, pessoas de cor e nativas, ele só começa a entender onde está situado quando, já no início da adolescência, a família retorna para a Cidade do Cabo. Na tentativa de ser matriculado em um colégio, o aluno esbarra em uma clara segmentação, na qual se ele não está na última faixa (entre os garotos que frequentam colégios, claro), ele certamente está entre uma das últimas, aceito por um colégio católico que reúne os renegados da sociedade.
Infância pode não ser melhor livro do autor (e nem da trilogia), mas é um vivido espelho da formação da personalidade de um dos escritores mais polêmicos de sua geração, especialmente por expor de forma transparente as engrenagens de uma sociedade que preferia viver das aparências.
Tainara Machado
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