Há alguns dias, ganhei um Kindle da minha irmã. Uma das primeiras etapas da configuração do aparelho é uma pergunta sobre preferências, para que eu receba recomendações alinhadas aos meus gostos. Eu, sempre tão indecisa nas definições de preferidos, sobretudo quando o assunto é livro, não hesitei nem um segundo em marcar o gênero “Literatura ficção”.
Leio biografias, livros-reportagem, ensaios, mas nenhuma categoria me atrai tanto quanto a ficção. Não sei bem as razões dessa inclinação. Às vezes, penso que é vontade de fugir do mundo. Outras vezes, acho justamente o contrário: busco na ficção a compreensão da realidade. Mas será que esses dois universos são assim tão separados?
O blog tornou-me uma leitora mais curiosa. As páginas de um romance já não me bastam para entender a obra. Mergulho em prefácios, epílogos, orelhas, pesquisas na internet ou em outros livros – tudo para conhecer mais detalhes da vida do escritor e, quem sabe, encontrar pistas que me ajudem a compreender melhor o que acabei de ler.
A literatura, enquanto forma de expressão, carrega a história de cada indivíduo. Por mais distante ou surreal que pareça um enredo, há sempre algum aspecto que veio da experiência de vida do escritor. Pode ser um lugar, um personagem ou uma cena: a ficção está constantemente flertando com a realidade.
Na última semana, terminei a leitura de O Espírito dos Meus Pais Continua a Subir na Chuva. No epílogo do livro, uma confissão do autor, o argentino Patricio Pron, me chamou bastante atenção:
Embora os fatos narrados neste livro sejam essencialmente verdadeiros, alguns deles são produtos das necessidades do texto ficcional, cujas regras são diferentes das regras de gêneros como o testemunho e a autobiografia; nesse sentido, gostaria de mencionar aqui o que disse uma vez o escritor espanhol Antonio Muñoz Molina, como lembrete e advertência: “Uma gota de ficção mancha tudo de ficção”.
Não poderia concordar mais: a ficção, apesar de nascer de diversos gêneros, se sobrepõe a todos eles. Não à toa a maioria das produções cinematográficas ou televisivas apoia-se legalmente nesta famosa frase: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.
Sabemos, contudo, que não há meras coincidências. Conscientemente ou não, explicitamente ou não, a história de cada escritor revela-se nas histórias que ele cria.
Autores, e artistas em geral, são exímios observadores da realidade. Conseguem extrair de cada experiência um relato. Um dos motivos pelos quais achei que nunca poderia ser escritora era porque não tinha uma vida tão interessante quanto a maioria deles parecia ter. Eu imaginava uma existência tão fora do comum, mergulhada em um verdadeiro caldeirão de ideias de onde a ficção surgia naturalmente.
Hoje, embora ainda não tenha me arriscado na escrita ficcional, eu sei que não existe o “interessante”, mas sim o “interesse”. Em um dos meus poemas favoritos, Desatenção, a polonesa Wisława Szymborska, que é uma mestra do cotidiano, diz:
Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.Executei as tarefas diárias
como se isso fosse tudo o que devia fazer.
A ficção encontra morada em qualquer lugar. Ela é uma forma de enxergar o mundo, de tornar a realidade mais palatável e apaziguar os conflitos internos. Recentemente, deparei-me, no livro As Manifestações, com uma epígrafe atribuída ao filósofo Aristóteles, que resume bem tal ideia:
Eu chamo de ficção a violência feita à realidade a fim de satisfazer uma hipótese.
Mariane Domingos
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