Não é segredo para os leitores do blog que gosto muito de romances que exploram os artifícios da memória. Já escrevi até um post sobre esse assunto e ressaltei em diversas resenhas a habilidade de certos autores com o tema (Alan Pauls, Javier Marías e Patrick Modiano são alguns exemplos). Era de se esperar, portanto, minha identificação com esta obra do argentino Patricio Pron, intitulada O Espírito dos Meus Pais Continua a Subir na Chuva (Editora Todavia, 158 páginas).

Um jornalista viciado em remédios e com problemas para enfrentar a realidade volta à sua cidade natal, na Argentina, depois de uma longa e confusa temporada na Europa. Ele retorna para rever o pai, que está hospitalizado. Mais do que o reencontro com sua terra e sua família, essa visita traz à tona um acerto de contas com o passado.

O protagonista, assim como seu pai, sofre com alguns problemas de memória. Seus momentos sob o efeito dos remédios e sua infância são borrões que pouco revelam acerca de sua identidade. Já o pai tem dificuldades com a memória recente, especialmente para os fatos rotineiros.

O texto de Pron é repleto de metáforas bem construídas, que recorrem à materialidade do cotidiano para expressar conceitos bastante abstratos como o tempo e a memória. Seu estilo lembra muito o de Alan Pauls, outro grande escritor argentino:

Eu pensava que a péssima memória do meu pai era apenas uma desculpa para se livrar dos raros inconvenientes ocasionados por uma vida cotidiana que havia muito tempo ele tinha deixado nas mãos da minha mãe: aniversários, datas festivas, compras domésticas. Se meu pai tivesse uma agenda, eu pensava, cada folha se soltaria no dia seguinte, um objeto incandescente, o tempo todo em chamas, como o diário de um piromaníaco. 

Durante a estadia na casa dos pais, o narrador acaba remexendo a biblioteca da família. Ele descobre, então, que o pai vinha investigando a morte de um antigo conhecido na pequena Trébol, sua cidade natal. A vítima, Alberto Burdisso, havia desaparecido misteriosamente e gerado comoção na comunidade local.

Mais do que as lacunas dessa história, o que chama a atenção do protagonista é o interesse do pai no caso. Por que ele havia investido tanto tempo e todas as suas habilidades de jornalista nessa história aparentemente tão distante?

A narrativa é construída a partir de recortes de jornal, mapas e fotos que compõem o dossiê montado pelo pai. Cada fragmento preenche os vazios não só do enigmático desaparecimento de Burdisso, mas também da ligação do pai com a vítima e do narrador com o seu passado.

Logo descobrimos que esse elo está na história sangrenta da Argentina na década de 70. O caso de Trébol é o gatilho que aciona tanto a memória individual de pai e filho quanto a memória social de uma das ditaduras mais violentas da América Latina.

As reflexões que Pron propõe acerca desses dois domínios (histórias versus História) são dignas de nota. Ao reunir os fragmentos da investigação do pai, o narrador se vê impelido a contar essa história, mas não se sente à vontade de fazê-lo utilizando a fórmula de romance policial, justamente porque acredita haver uma responsabilidade ainda mais profunda no registro da memória social:

(…) contar o que aconteceu naquela época sob a perspectiva do gênero policial tinha algo de espúrio, já que, por um lado, o crime individual tinha menos importância que o crime social, mas o crime social não podia ser contado com os artifícios de uma história de detetive; (…) porque o desfecho da maior parte das histórias policiais é condescendente com o leitor, não importam quão brutais sejam as tramas, para que o leitor, depois de os os fios soltos terem sido amarrados e os culpados finalmente castigados, possa retornar ao mundo real com a convicção de que os crimes são resolvidos e permanecem trancados entre as capas de um livro, e que o mundo fora do livro se guia pelos mesmos princípios de justiça da história narrada e não deve ser questionado. 

Para além do suspense do enredo, o grande trunfo do romance de Pron é nos deixar pensativos quanto ao papel de cada indivíduo na preservação da memória coletiva. Quantos erros que se repetem na História não resultam da comodidade do esquecimento? Qual a nossa responsabilidade em relação às gerações anteriores e às seguintes? Pron já dá a resposta logo no primeiro capítulo do livro, quando diz:

Os filhos são os detetives que os pais colocam no mundo para que um dia retornem e contem a eles sua história e, assim, eles mesmos possam compreendê-las. 

Afinal, mais que respeitar o passado, preservar a memória é garantir um futuro menos errante.


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Mariane Domingos

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