Nossas origens nos definem? Neste romance, NW, um “épico urbano” nas palavras de Joyce Carol Oates, a escritora britânica Zadie Smith mergulha na multiculturalidade de um bairro londrino para criar quatro histórias que se entrelaçam e comprovam que o destino de um indivíduo é muito mais complexo do que uma simples somatória de contexto e educação.
Os quatro personagens principais – Leah, Natalie, Nathan e Felix – cresceram em Kilburn, na região de NW, bairro londrino moldado por sucessivas ondas migratórias. Na idade adulta, eles voltam a se encontrar, carregando trajetórias e escolhas diferentes, mas um passado em comum.
Natalie, filha de jamaicanos, driblou as expectativas da sociedade, formou-se em Direito, casou-se com um homem rico e desenvolveu uma carreira sólida. Sua vida familiar, no entanto, é uma bomba relógio, muito bem disfarçada, mas prestes a explodir. Leah, melhor amiga de Natalie e de descendência irlandesa, contrariou o sonho da mãe de vê-la em um posto bem remunerado, quando decidiu se dedicar ao trabalho humanitário e casar-se com um imigrante francês, cabelereiro e de ascendência africana. Nathan, errante desde sua adolescência, seguiu exatamente o caminho anunciado: drogas, violência e rua. Já Felix conseguiu superar o vício, mas não os obstáculos para uma carreira promissora. O aspirante a cineasta termina como um mecânico de carros com uma vida amorosa bastante conturbada.
Mesmo tendo seguido caminhos bem diferentes, as quatro histórias se cruzam em um episódio fatídico, que os leva de volta às origens, em NW. Embora o contexto socioeconômico seja o gancho da narrativa e a geografia de Londres, seu guia, o romance de Smith transcende a análise social. Com personagens complexos, a autora traz à tona temáticas universais, intrínsecas à natureza humana, como a ambição e o comodismo, a mudança e a continuidade, a expectativa e a realidade.
Ao mesmo tempo em que Smith explicita as barreiras raciais que tornaram o caminho profissional de Natalie mais difícil e as pressões sociais que fizeram Leah acreditar que era uma aberração por não ter o instinto materno, a autora não perde de vista a complexidade de sentimentos que empurra cada personagem para suas decisões. As influências externas existem tanto quanto as internas. Nem tudo é tão cartesiano quanto, olhando de longe, parece ser:
Eles iam ser advogados, as primeiras pessoas de ambas as famílias a terem diploma profissional. Achavam que a vida era um problema que poderia ser resolvido através da profissionalização.
Smith mostra com clareza que, além daquilo que a sociedade espera, que já pode ser opressor e cruel o suficiente, ainda é preciso lidar com a frustração pessoal. A comparação é o principal veneno nesse cenário. Aquela velha máxima “a grama do vizinho é sempre mais verde”, que nasce da ilusão dos jogos sociais, em que cada indivíduo representa um papel, é o início de uma eterna e insuportável insatisfação consigo mesmo:
A felicidade não é um valor absoluto. É um estado de comparação.
Além de divagações filosóficas como essa, nesse romance ainda há espaço para um passeio eletrizante por Londres e suas zonas, bairros e estações de metrô. A escrita de Smith, sempre tão acelerada e precisa, acompanha o ritmo vertiginoso da capital inglesa – um caldeirão de contradições, no qual oportunidade e obstáculos, diversidade e intolerância caminham lado a lado.
Assim como em seu romance anterior, Sobre a Beleza, em NW, Smith também capta, habilmente, tanto a imprevisibilidade da natureza humana quanto a complexidade da sociedade. Não espere clichês de suas narrativas. Como bem ressalta este trecho de NW, até nos trajetos mais óbvios, há espaço para surpresas:
Havia uma inevitabilidade nesse caminho na direção um do outro que encorajava meandros ao longo do percurso.
A literatura de Smith é toda “meandros”. Afinal, origem e destino são importantes, mas nem sempre decisivos.
Mariane Domingos
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