Garçonete de um famoso restaurante em São Paulo, a personagem principal de Tudo Pode Ser Roubado, romance de estreia de Giovana Madalasso (Todavia Livros, 189 páginas), está sempre à espreita de breves encontros sexuais que possam terminar com objetos de valor sutilmente furtados.
Descrita como uma “sonhadora mequetrefe”, ela parece se importar pouco com o fato de levar uma vida que muitos poderiam caracterizar como sem propósito. Suas ambições momentâneas, depois de sair do “fungo”, o apartamento sem incidência de luz solar em que morou quando chegou a São Paulo, envolvem dar entrada no seu apartamento e não ser demitida do trabalho no restaurante, onde a galeria de alvos potenciais para seus roubos é extensa.
Seu cotidiano vazio acaba sofrendo uma reviravolta quando é procurada por um tipo duvidoso. Chamado de Biel, o personagem, espécie de pilantra profissional, lhe traz uma proposta arriscada e inusitada: o roubo de um livro raro, usando suas táticas de sedução para subtraí-lo da casa de um professor. O colecionador que contratou os serviços do vigarista nos remete quase imediatamente a Charles Cosac, ex-dono da editora que levava o seu nome e de um sócio (Cosac & Naify). Descrito neste perfil do jornal Valor Econômico como um colecionador voraz de obras de arte, Cosac é de uma personalidade marcante, capaz de levar os dedos do avô falecido pendurados no pescoço.
J., o personagem, é menos excêntrico, mas nas paredes da sua casa também estão os fragmentos de sua paixão colecionadora: um cocar de uma tribo amazônica, trocado por uma caixa de aspirinas, esculturas, quadros, livros raros…
É a esta coleção que ele pretende somar a primeira edição de O Guarany, de José de Alencar, de 1857, volume nas mãos de um professor universitário pouco ambicioso. O valor do livro para cada um desses personagens dá a medida das paixões: para o homem rico que vive em Higienópolis, algo pelo qual vale transgredir a lei, mas que logo será substituído por outro objeto de desejo; para o professor, um bem tão valioso que vale o rompimento de relações familiares e o sonho “pequeno-burguês” da casa própria.
A personagem principal está pouco interessada nesses conflitos, e por isso os enxerga de uma maneira simples, quase desconcertante. O roubo pode significar o seu próprio acesso à relativa estabilidade financeira, além de uma aventura que a tire da monotonia do dia a dia como garçonete de um “restaurante badalado”.
Cativante, a personagem, que não chega a ganhar nome próprio, não desperta em seus leitores julgamentos morais. Esse é, aliás, o grande trunfo de Tudo Pode Ser Roubado. Ao eleger como narradora alguém de moralidade dúbia, Madalasso cava o espaço para escrever um guia satírico e mordaz das contradições desencadeadas por uma cidade em que a desigualdade é onipresente e as relações são cada vez mais fugazes e vazias.
Capaz de analisar com sensibilidade os mais diferentes tipos com quem cruza na noite paulistana, do fotógrafo de guerra da Síria ao homem que perdeu a esposa, da mulher com um câncer terminal a um pastor sem nenhuma ética, a narradora nos brinda com uma galeria de tipos paulistanos. De todos eles, ela subtrai mais que o objeto que acaba levando em sua bolsa, roubando um pouco do potencial ingênuo dos encontros fortuitos, de uma vida menos solitária.
O vazio da vida em São Paulo tem dominado os lançamentos literários recentes: Meia-Noite e Vinte, de Daniel Galera, As Perguntas, de Arthur Xerxensky, e agora este livro de Giovana Madalosso, seguem, em alguma medida, correntes parecidas, em que o caos urbano se transfigura em relações emocionais conturbadas, instáveis e superficiais.
Neste romance em que afetos, rotinas e personalidades podem ser roubados, há sempre a espreita a possibilidade de um passo atrás, para uma vida de mais significados. Mas, como lemos na epígrafe do livro, “Somos livres, e este é o inferno”, frase belíssima de Clarice Lispector.
Tainara Machado
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9 de março de 2018 at 11:12
Amei a resenha, Tatá! Fiquei com vontade de ler.