A Queda (Grupo Editorial Record, 112 páginas): o que passa pela sua cabeça quando você lê o título desse livro? Pois bem, esqueça tudo. Se tem uma característica marcante na literatura de Albert Camus é a capacidade de surpreender o leitor. Esse breve romance, que por vezes se confunde com um ensaio filosófico, é uma imersão genial na complexidade humana a partir de uma narrativa inusitada.
O protagonista é um francês que vive em Amsterdã e se define como “juiz-penitente”. Frequentador assíduo do bar Mexico-City, é nesse ambiente que ele encontra seu interlocutor. Apesar de o relato nascer da ideia de um diálogo, ele nos é apresentado como um monólogo, já que, em nenhum momento, ouvimos a voz do outro personagem.
A incógnita em torno desse interlocutor, aliás, é um dos trunfos do romance. O tom confessional que o narrador adota diante de um completo estranho fomenta a curiosidade em torno do personagem. Até o final do livro – eu diria até mesmo depois de terminada a leitura – há espaço para interpretações sobre quem seria esse ouvinte tão paciente.
Com um relato em primeira pessoa, o protagonista conta sua vida, em uma história pautada mais por sua evolução emocional do que por fatos. De uma existência tranquila e superficialmente bem resolvida, em que sobravam amor próprio e indiferença em relação ao próximo, o narrador passa a uma existência assombrada, principalmente, pelos sentimentos de culpa e de vergonha que nascem quando ele toma consciência de seu desdém em relação ao mundo:
Quando penso nesse período em que eu pedia tudo sem dar nada em troca, mobilizava tantos seres ao meu serviço, colocava-os em uma espécie de geladeira, para tê-los um dia ou outro em minhas mãos, quando me convinha, não sei como nomear esse sentimento curioso que me alcança. Não seria vergonha? A vergonha, diga-me, meu caro compatriota, ela não queima um pouco? Ou se trata dela ou de um desses sentimentos ridículos relacionados à honra.
Imaginando-se superior aos demais, o narrador não enxergava os julgamentos que os outros faziam dele. Estava muito confortável em sua posição de neutralidade – imparcialidade esta que, vale ressaltar, não vinha da virtude de não julgar, mas sim de uma completa indiferença pelos seus semelhantes. Ele simplesmente não se interessava por nada que lhes passava. Impossível não nos lembrarmos aqui de Mersault, personagem de outro romance de Camus, O Estrangeiro, cuja frase preferida era a expressão perfeita do desdém: “ça m’est égal” (em português, “me dá igual”).
Quando o narrador desperta e percebe que essa realidade, em que ele pairava acima de todos, só existia em sua cabeça, tem início uma reflexão bastante profunda sobre como as relações entre os indivíduos são pautadas por julgamentos e como essa situação não faz sentido, visto que, em um cenário de multiplicidade de perspectivas e juízes, todos ocupam, em dado momento, o banco dos réus:
Vou lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o Julgamento final. Ele acontece todos os dias.
A grande virada na vida do personagem acontece quando, à noite, em plena caminhada de volta para casa, ele escuta o barulho de um corpo em queda livre em direção ao rio. Paralisado pelo susto, decide não fazer nada e seguir em frente. Dois ou três anos depois, passando mais uma vez, agora por outra ponte, ele ouve risos às suas costas, mas, quando se volta para direção dos ruídos, não encontra ninguém.
Esses episódios misteriosos, mas bastante concretos (afinal, o que é mais físico do que uma queda?), são o ponto de partida para o relato filosófico que Camus empreende. À medida que a narrativa avança, percebemos que essas duas situações podem ser uma metáfora para o despertar da consciência do personagem. Logo nas primeiras páginas do livro, há um trecho que diz:
À noite, nunca passo numa ponte. É uma promessa. Suponha que, depois de tudo, alguém se atire na água. Das duas, uma: ou você segue a pessoa para resgatá-la e, no tempo frio, se arrisca ao pior, ou você a abandona, e os mergulhos contidos deixam, eventualmente, estranhas cãibras.
A queda na água e a falta de reação do personagem podem ser interpretadas, portanto, como a decadência espiritual de alguém que, um dia, resolve conhecer mais de perto sua própria alma (cair em si mesmo) e desvendar sua existência.
De uma cena tão simples, Camus surge com o inesperado e aí reside a genialidade de um Nobel de literatura. Afinal, quem imaginaria que no relato de uma queda caberia tanta filosofia?
Mariane Domingos
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